2025/12/08

Do Sucesso Escolar ao Desenvolvimento Pessoal ao Longo da Vida

 

O combate ao insucesso escolar, e a promoção do sucesso num número o mais alargado possível de crianças e jovens, constituem um tema da maior relevância para os decisores políticos em educação. Sendo a escolarização um fator essencial de desenvolvimento e de justiça social, o sucesso dos indivíduos e das escolas é unanimemente considerado um importante objetivo a atingir. E o seu malogro, sobretudo quando redundante em abandono escolar, constitui uma legítima fonte de inquietação quer para os estudantes e suas famílias, quer para a sociedade como um todo.

Não admira, portanto, que este tema tenha sido uma forte preocupação de todos executivos dos últimos anos, de que se pode dar como exemplo, entre muitos outros, o Plano + aulas + sucesso, aprovado pela atual equipa governativa pouco depois de entrar em funções.

Porém, para compreender verdadeiramente o momento atual face a este tema, é importante revisitar o modo como ele se foi inscrevendo na agenda política e ganhando importância social e sociológica desde, pelo menos, os anos 60 do século passado.

A discussão em torno da promoção do sucesso e da melhoria das taxas de conclusão escolar começa a fazer-se essencialmente a partir da democratização e massificação do ensino, que se verifica em diversos países da Europa (com ritmos diferentes) a partir dos anos 1950/60. Até então, uma vez que apenas uma pequena parte dos alunos frequentava o ensino secundário, o abandono da escola nessa fase era considerado normal e encarado como um problema do foro individual (Vieira, 2010; Sebastião & Álvares, 2015).


 

A partir dos anos 1960, porém, o abandono escolar começa a ser visto como um fenómeno com raízes e implicações em diversas instâncias. Em Portugal, é essencialmente depois de 1974 que se abre espaço para o reconhecimento da complexidade desta questão e caminho para a progressiva implementação de mudanças, concretizadas, sobretudo, a partir dos anos 1980. Expressão disso, a Lei de Bases da Educação, publicada em 1986, estabelece, como obrigações do Estado, a promoção do sucesso educativo e o apoio a alunos com necessidades.

São então lançados programas de combate ao insucesso e abandono escolares. Até final dos anos 1980, a grande prioridade é a expansão da rede escolar, sendo na década de 1990 que iniciativas mais especificamente dirigidas para o combate ao insucesso se intensificam. É o caso da implementação de vias alternativas para alunos com insucesso escolar reiterado (os “currículos alternativos”); ou do programa TEIP - Territórios Educativos de Intervenção Prioritária.

Estas intervenções, quer ao nível da organização do sistema escolar, quer num sentido compensatório das desigualdades sociais dos alunos, denotam um entendimento do insucesso já não como um problema individual, mas como uma questão de natureza multifatorial, cuja complexidade vinha sendo realçada pela produção académica.

Várias medidas equivalentes surgem em diversos países europeus. A título de exemplo, a França implementa, desde o início dos anos 1980, o programa ZEP - Zones d’Éducation Prioritaire (atualmente REP - Réseaux d’éducation prioritaire) com funções semelhantes ao programa TEIP.

De facto, a implementação, em Portugal, de programas de combate ao insucesso escolar faz-se, em grande medida, por pressão internacional, sobretudo na sequência da adesão à Comunidade Europeia, fomentados também pelos diversos dispositivos de comparação internacional que começam a publicar, com regularidade crescente, relatórios onde se apresentam dados estatísticos com base nos quais se desenham perfis de desenvolvimento das diversas nações.

Para além destes programas, a reintrodução do ensino profissional, que tinha sido abandonado logo depois de 1974, constituiu uma medida de grande impacto a nível estatístico, também ela estimulada pelas orientações internacionais e fortemente indexada ao problema do abandono escolar. A sua criação, em 1989, foi assumidamente uma resposta aos “muitos milhares de alunos que reprovavam consecutivamente no ensino básico e no ensino secundário geral e eram empurrados para o abandono escolar precoce, sem qualquer qualificação profissional, sem perspetivas de uma adequada inserção socioprofissional e com uma autoestima destroçada”. Deste modo, “o ensino secundário profissional nasceu, antes de mais, por um imperativo ético. [...] O ensino secundário português não tinha de ser uma plataforma pública de sofrimento e abandono para perto de 50% das suas futuras gerações” (Azevedo, 2009, p. 16).


 

Efetivamente, em 1992, Portugal apresentava uma das mais elevadas taxas de abandono escolar da União Europeia, situada nos 50%. Por diversas razões, inclusive para a viabilização da afetação de fundos de apoio, Portugal necessita de cumprir critérios europeus e compaginar-se com os restantes países a nível estatístico.

Os programas de ‘educação compensatória’ estão associados à emergência do conceito de equidade, como mais adequado do que o de igualdade para abordar este tema, em resultado da constatação de que a igualdade de acesso é insuficiente para assegurar condições equivalentes de sucesso escolar (Torres & Souza, 2022; Duru-Bellat & Mingat, 2010).

Este movimento para a redução de taxas de insucesso e abandono escolares está em estreita relação com o crescente interesse por este assunto por parte de pensadores do campo da economia, que salientam o papel da educação na riqueza individual e coletiva. A partir dos anos 1990 aumentam os estudos sobre o ‘retorno’ do investimento em educação, tanto ao nível das famílias como dos Estados. A contribuição das qualificações dos cidadãos é amplamente considerada como fator-chave para o desenvolvimento e criação de bem-estar nas sociedades.

Além disso, o abandono escolar é progressivamente visto como um fenómeno responsável pelo empobrecimento coletivo e fonte de despesa pública a diversos níveis: por um lado, as pessoas menos escolarizadas registam maiores dificuldades em obter e manter empregos qualificados, contribuindo assim, em menor escala, para a riqueza coletiva; por outro lado, a literatura vai revelando custos sociais associados aos baixos níveis de qualificação escolar, como por exemplo: “long-term unemployment, poverty, bleak health prospects, sustained dependence on public assistance, single parenthood (in females), political and social apathy, and juvenile crime” (De Witte, 2013, p. 2).

À preocupação social relativamente à qualificação para a empregabilidade não era estranha a acentuada subida, ao longo dos anos 80, das taxas de desemprego, a nível internacional, com especial incidência sobre o desemprego jovem. É todo este contexto que pesa na apresentação de Portugal, em 1992, de uma das maiores taxas de abandono escolar da Europa.

Nesta fase, o próprio conceito de abandono escolar é objeto de aprimoramento conceptual, juntamente com os critérios para a sua medição e comparação entre nações: em 1999, surge o indicador de ‘abandono escolar precoce’ (early school leaving), que foi incluído nos objetivos da Estratégia Europeia para o Emprego (EEE) e considerado domínio-chave prioritário da Agenda de Lisboa, em 2000.

Paralelamente à implementação deste plano de desenvolvimento da União Europeia surge, nos Estados Unidos da América, o “No Child Left Behind Act” (2001), que determinou, como objetivo, subir a média de conclusão do ensino secundário naquele país para os 90% até o ano de 2020 (que se cifrava, então, nos 71%). O surgimento simultâneo destes programas, de ambos os lados do Atlântico, diz da internacionalidade desta preocupação.



A discussão em torno do abandono escolar, no fórum de Lisboa, é muito marcada pelo seu impacto a nível do emprego jovem, enquanto pilar de desenvolvimento económico; e as suas orientações traduzem-se, em Portugal, no Plano Nacional de Emprego de 2001. Nesta linha, é expressivo que, em relatórios como o Study on Access to Education and Training, Basic Skills and Early School Leavers, se discuta “How are early school leavers performing on the labour market?”, considerada uma das questões-chave do estudo (Comissão Europeia, 2005).

Em resposta a estas diretrizes assiste-se a uma generalizada redução das taxas de abandono escolar na União Europeia. Portugal, partindo de uma posição tão deficitária, conseguiu uma importante diminuição, mais acelerada do que a média europeia, com a taxa de abandono escolar a cair 20,3 p.p. entre 1992 e 2012 (DGEEC, 2023).

O aumento do número de alunos no ensino secundário permitiu estabelecer este ciclo de estudos como referência de escolaridade para todos os jovens, pretensão que veio a ser concretizada em 2009 com o estabelecimento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos.

Entretanto, com a crise financeira e económica que atinge a Europa, a partir de 2008, e os programas de austeridade que se lhe seguem, abre-se nova etapa de dificuldades no campo educativo. À degradação das condições de vida das famílias acresce a redução do investimento público em educação. Ainda assim, em 2009, é lançado o Programa ‘Mais Sucesso Escolar’, que permitia às escolas candidatarem-se a apoios para aplicação das metodologias “turma mais” e “projeto Fénix”.

São medidas que atuam sobre a organização e os recursos das escolas e privilegiam a intervenção em contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, fomentando a articulação entre vários parceiros da comunidade local e apoiando-se em novos profissionais que surgem nas escolas, como animadores socioculturais ou promotores de leitura.

Na viragem para a segunda década do século XXI, assiste-se a alguma inflexão de iniciativas centradas na organização escolar ou nos recursos económicos das famílias, para uma maior responsabilização dos alunos pelo seu sucesso ou insucesso. Por exemplo, no Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado em 2012, encontramos um reforço da responsabilidade dos estudantes pelos seus níveis de desempenho académico.

É o reflexo de uma tendência global. A valorização da agência dos sujeitos como principais responsáveis pelos seus desempenhos não é nova; mas assiste-se cada vez mais à sua apropriação pelo discurso mediático e político e à disseminação de uma ideologia meritocrática que trás consigo exigências de accountability individual.

Por outro lado, as recentes transformações no mundo do trabalho concorrem fortemente para reforçar a ideia segundo a qual todos devemos estar preparados para uma permanente adaptação a contextos profissionais incertos e em constante mudança. Neste quadro, cada jovem deve procurar munir-se com um leque diversificado de competências e conhecimentos, escolares e não só, desenhando o seu ‘perfil curricular’ com autonomia e criatividade.

Neste sentido, é impossível pensar sobre as questões que envolvem o sucesso / insucesso no percurso escolar sem considerar as suas amplas implicações sobre o mindset e os comportamentos adotados no subsequente trajeto e desenvolvimento profissional. A predisposição para uma atitude aprendente ao longo de toda a vida é crucial.


Fostering a culture of continuous growth that benefits both the individual and the organisation. In: https://elmosoftware.com.au/resources/blog/employee-learning-and-development-hr-guide

 

Os conceitos e as práticas do campo da Formação têm acompanhado estas transformações. Muito para além da atualização técnica, o alargamento dos conteúdos e dos temas abrangidos pela Formação em contexto laboral vão ao encontro destas necessidades de adaptação e de flexibilidade.

Ao mesmo tempo, é imprescindível assegurar a eficácia dos processos de transferência da Formação para o local de trabalho e para as práticas profissionais, reforçando a íntima relação entre as esferas formativa e laboral.

Por outro lado, a valorização experiencial e biográfica convida a integrar uma reflexividade nas ações formativas que reforce o sentido das experiências profissionais. A própria identidade pessoal se constrói, hoje, a partir do exercício de uma reflexividade permanente e do traçar de caminhos singulares em contextos globalizados de incerteza e de insegurança.

Neste quadro de crescente autonomia (para o bem e para o mal) na construção dos percursos pessoais e profissionais, a ideia de sucesso ultrapassa de largo o universo das materialidades ou da ostentação de sinais exteriores, e só adquire significado no território mais profundo da autorrealização.

E é no percurso escolar que se pode consolidar, em cada indivíduo, a disponibilidade e a motivação para uma vida profissional futura onde a atitude aprendente e o desenvolvimento pessoal marquem presença assídua e natural.


TSC

 

 

Referências bibliográficas

 

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