O
combate ao insucesso escolar, e a promoção do sucesso num número o mais
alargado possível de crianças e jovens, constituem um tema da maior relevância
para os decisores políticos em educação. Sendo a escolarização um fator
essencial de desenvolvimento e de justiça social, o sucesso dos indivíduos e
das escolas é unanimemente considerado um importante objetivo a atingir. E o
seu malogro, sobretudo quando redundante em abandono escolar, constitui uma
legítima fonte de inquietação quer para os estudantes e suas famílias, quer para
a sociedade como um todo.
Não
admira, portanto, que este tema tenha sido uma forte preocupação de todos
executivos dos últimos anos, de que se pode dar como exemplo, entre muitos
outros, o Plano + aulas + sucesso,
aprovado pela atual equipa governativa pouco depois de entrar em funções.
Porém,
para compreender verdadeiramente o momento atual face a este tema, é importante
revisitar o modo como ele se foi inscrevendo na agenda política e ganhando
importância social e sociológica desde, pelo menos, os anos 60 do século
passado.
A discussão em torno da promoção do sucesso e da melhoria das taxas de conclusão escolar começa a fazer-se essencialmente a partir da democratização e massificação do ensino, que se verifica em diversos países da Europa (com ritmos diferentes) a partir dos anos 1950/60. Até então, uma vez que apenas uma pequena parte dos alunos frequentava o ensino secundário, o abandono da escola nessa fase era considerado normal e encarado como um problema do foro individual (Vieira, 2010; Sebastião & Álvares, 2015).
A
partir dos anos 1960, porém, o abandono escolar começa a ser visto como um
fenómeno com raízes e implicações em diversas instâncias. Em Portugal, é
essencialmente depois de 1974 que se abre espaço para o reconhecimento da
complexidade desta questão e caminho para a progressiva implementação de
mudanças, concretizadas, sobretudo, a partir dos anos 1980. Expressão disso, a
Lei de Bases da Educação, publicada em 1986, estabelece, como obrigações do
Estado, a promoção do sucesso educativo e o apoio a alunos com necessidades.
São
então lançados programas de combate ao insucesso e abandono escolares. Até
final dos anos 1980, a grande prioridade é a expansão da rede escolar, sendo na
década de 1990 que iniciativas mais especificamente dirigidas para o combate ao
insucesso se intensificam. É o caso da implementação de vias alternativas para
alunos com insucesso escolar reiterado (os “currículos alternativos”); ou do
programa TEIP - Territórios Educativos de
Intervenção Prioritária.
Estas
intervenções, quer ao nível da organização do sistema escolar, quer num sentido
compensatório das
desigualdades sociais dos alunos, denotam um entendimento do insucesso
já não como um problema individual, mas como uma questão de natureza
multifatorial, cuja complexidade vinha sendo realçada pela produção académica.
Várias
medidas equivalentes surgem em diversos países europeus. A título de exemplo, a
França implementa, desde o início dos anos 1980, o programa ZEP - Zones d’Éducation Prioritaire (atualmente
REP - Réseaux d’éducation prioritaire)
com funções semelhantes ao programa TEIP.
De
facto, a implementação, em Portugal, de programas de combate ao insucesso
escolar faz-se, em grande medida, por pressão internacional, sobretudo na sequência
da adesão à Comunidade Europeia, fomentados também pelos diversos dispositivos
de comparação internacional que começam a publicar, com regularidade crescente,
relatórios onde se apresentam dados estatísticos com base nos quais se desenham
perfis de desenvolvimento das diversas nações.
Para
além destes programas, a reintrodução do ensino profissional, que tinha sido abandonado
logo depois de 1974, constituiu uma medida de grande impacto a nível
estatístico, também ela estimulada pelas orientações internacionais e
fortemente indexada ao problema do abandono escolar. A sua criação, em 1989,
foi assumidamente uma resposta aos “muitos milhares de alunos que reprovavam
consecutivamente no ensino básico e no ensino secundário geral e eram
empurrados para o abandono escolar precoce, sem qualquer qualificação
profissional, sem perspetivas de uma adequada inserção socioprofissional e com
uma autoestima destroçada”. Deste modo, “o ensino secundário profissional
nasceu, antes de mais, por um imperativo ético. [...] O ensino secundário
português não tinha de ser uma plataforma pública de sofrimento e abandono para
perto de 50% das suas futuras gerações” (Azevedo, 2009, p. 16).
Efetivamente,
em 1992, Portugal apresentava uma das mais elevadas taxas de abandono escolar
da União Europeia, situada nos 50%. Por diversas razões, inclusive para a
viabilização da afetação de fundos de apoio, Portugal necessita de cumprir critérios europeus
e compaginar-se com os restantes países a nível estatístico.
Os
programas de ‘educação compensatória’ estão associados à emergência do conceito
de equidade, como mais adequado do que o de igualdade para abordar este tema,
em resultado da constatação de que a igualdade de acesso é insuficiente para
assegurar condições equivalentes de sucesso escolar (Torres & Souza, 2022;
Duru-Bellat & Mingat, 2010).
Este
movimento para a redução de taxas de insucesso e abandono escolares está em estreita
relação com o crescente interesse por este assunto por parte de pensadores do
campo da economia, que salientam o papel da educação na riqueza individual e
coletiva. A partir dos anos 1990 aumentam os estudos sobre o ‘retorno’ do
investimento em educação, tanto ao nível das famílias como dos Estados. A
contribuição das qualificações dos cidadãos é amplamente considerada como
fator-chave para o desenvolvimento e criação de bem-estar nas sociedades.
Além
disso, o abandono escolar é progressivamente visto como um fenómeno responsável
pelo empobrecimento coletivo e fonte de despesa pública a diversos níveis: por um lado, as pessoas
menos escolarizadas registam maiores dificuldades em obter e manter empregos
qualificados, contribuindo assim, em menor escala, para a riqueza coletiva; por
outro lado, a literatura vai revelando custos sociais associados aos baixos
níveis de qualificação escolar, como por exemplo: “long-term unemployment,
poverty, bleak health prospects, sustained dependence on public assistance,
single parenthood (in females), political and social apathy, and juvenile
crime” (De Witte, 2013, p. 2).
À
preocupação social relativamente à qualificação para a empregabilidade não era
estranha a acentuada subida, ao longo dos anos 80, das taxas de desemprego, a
nível internacional, com especial incidência sobre o desemprego jovem. É todo
este contexto que pesa na apresentação de Portugal, em 1992, de uma das maiores
taxas de abandono escolar da Europa.
Nesta
fase, o próprio conceito de abandono escolar é objeto de aprimoramento
conceptual, juntamente com os critérios para a sua medição e comparação entre
nações: em 1999, surge o indicador de ‘abandono escolar precoce’ (early school
leaving), que foi incluído nos objetivos da Estratégia Europeia para o Emprego
(EEE) e considerado domínio-chave prioritário da Agenda de Lisboa, em 2000.
Paralelamente
à implementação deste plano de desenvolvimento da União Europeia
surge, nos Estados Unidos da América, o “No
Child Left Behind Act” (2001), que determinou, como objetivo, subir a média
de conclusão do ensino secundário naquele país para os 90% até o ano de 2020
(que se cifrava, então, nos 71%). O surgimento simultâneo destes programas, de
ambos os lados do Atlântico, diz da internacionalidade desta preocupação.
A
discussão em torno do abandono escolar, no fórum de Lisboa, é muito marcada
pelo seu impacto a nível do emprego jovem, enquanto pilar de desenvolvimento
económico; e as suas orientações traduzem-se, em Portugal, no Plano Nacional de Emprego de 2001. Nesta
linha, é expressivo que, em relatórios como o Study on Access to Education and Training, Basic Skills and Early
School Leavers, se discuta “How are early school leavers performing on the
labour market?”, considerada uma das questões-chave do estudo (Comissão
Europeia, 2005).
Em
resposta a estas diretrizes assiste-se a uma generalizada redução das taxas de
abandono escolar na União Europeia. Portugal, partindo de uma posição tão
deficitária, conseguiu uma importante diminuição, mais acelerada do que a média
europeia, com a taxa de abandono escolar a cair 20,3 p.p. entre 1992 e 2012
(DGEEC, 2023).
O
aumento do número de alunos no ensino secundário permitiu estabelecer este
ciclo de estudos como referência de escolaridade para todos os jovens,
pretensão que veio a ser concretizada em 2009 com o estabelecimento da
escolaridade obrigatória até aos 18 anos.
Entretanto,
com a crise financeira e económica que atinge a Europa, a partir de 2008, e os
programas de austeridade que se lhe seguem, abre-se nova etapa de dificuldades
no campo educativo. À degradação das condições de vida das famílias acresce a
redução do investimento público em educação. Ainda assim, em 2009, é lançado o
Programa ‘Mais Sucesso Escolar’, que permitia às escolas candidatarem-se a
apoios para aplicação das metodologias “turma mais” e “projeto Fénix”.
São
medidas que atuam sobre a organização e os recursos das escolas e privilegiam a
intervenção em contextos socioeconómicos mais desfavorecidos, fomentando a
articulação entre vários parceiros da comunidade local e apoiando-se em novos
profissionais que surgem nas escolas, como animadores socioculturais ou
promotores de leitura.
Na
viragem para a segunda década do século XXI, assiste-se a alguma inflexão de
iniciativas centradas na organização escolar ou nos recursos económicos das
famílias, para uma maior responsabilização dos alunos pelo seu sucesso ou
insucesso. Por exemplo, no Estatuto do
Aluno e Ética Escolar, aprovado em 2012, encontramos um reforço da
responsabilidade dos estudantes pelos seus níveis de desempenho académico.
É
o reflexo de uma tendência global. A valorização da agência dos sujeitos como principais
responsáveis pelos seus desempenhos não é nova; mas assiste-se cada vez mais à
sua apropriação pelo discurso mediático e político e à disseminação de uma
ideologia meritocrática que trás consigo exigências de accountability individual.
Por
outro lado, as recentes transformações no mundo do trabalho concorrem
fortemente para reforçar a ideia segundo a qual todos devemos estar preparados
para uma permanente adaptação a contextos profissionais incertos e em constante
mudança. Neste quadro, cada jovem deve procurar munir-se com um leque
diversificado de competências e conhecimentos, escolares e não só, desenhando o
seu ‘perfil curricular’ com autonomia e criatividade.
Neste
sentido, é impossível pensar sobre as questões que envolvem o sucesso /
insucesso no percurso escolar sem considerar as suas amplas implicações sobre o
mindset e os comportamentos adotados
no subsequente trajeto e desenvolvimento profissional. A predisposição para uma
atitude aprendente ao longo de toda a vida é crucial.
Os
conceitos e as práticas do campo da Formação têm acompanhado estas
transformações. Muito para além da atualização técnica, o alargamento dos
conteúdos e dos temas abrangidos pela Formação em contexto laboral vão ao
encontro destas necessidades de adaptação e de flexibilidade.
Ao
mesmo tempo, é imprescindível assegurar a eficácia dos processos de
transferência da Formação para o local de trabalho e para as práticas
profissionais, reforçando a íntima relação entre as esferas formativa e
laboral.
Por
outro lado, a valorização experiencial e biográfica convida a integrar uma
reflexividade nas ações formativas que reforce o sentido das experiências profissionais.
A própria identidade pessoal se constrói, hoje, a partir do exercício de uma
reflexividade permanente e do traçar de caminhos singulares em contextos
globalizados de incerteza e de insegurança.
Neste
quadro de crescente autonomia (para o bem e para o mal) na construção dos
percursos pessoais e profissionais, a ideia de sucesso ultrapassa de largo o
universo das materialidades ou da ostentação de sinais exteriores, e só adquire
significado no território mais profundo da autorrealização.
E é no percurso escolar que se
pode consolidar, em cada indivíduo, a disponibilidade e a motivação para uma
vida profissional futura onde a atitude aprendente e o desenvolvimento pessoal marquem
presença assídua e natural.
TSC
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