Nesta obra, a que dá o nome de Felicidade pela Instrução, António Feliciano de Castilho decide reunir um conjunto de textos que foi escrevendo ao longo da década de 50 do século XIX.
Muitos
deles foram sendo publicados em jornais sob a forma de «cartas» e é o próprio
autor que toma a iniciativa de os reunir num só volume, ainda em 1854.
Depois
dessa data, esta publicação conhecerá várias reedições, entre as quais a de
1909 que aqui reproduzimos.
Como
escreve Castilho no prólogo, os textos aqui reunidos constituem “uma coleção de
apontamentos, de factos, lembranças e conselhos; ou uma espécie de índice dos
pontos que no assunto da instrução popular devem ser considerados”; os quais, a
serem postos em prática permitiriam o “florescer de uma sociedade mais ditosa e
mais digna de o ser” (p. 12).
Assim,
a ‘felicidade’ de que aqui se trata não é, (ou não é apenas) a felicidade
individual dos indivíduos que têm acesso à instrução. Trata-se antes de uma
ideia de ‘felicidade coletiva’, dos povos e das nações, que Feliciano de
Castilho acreditava só ser possível de alcançar pelo aumento decisivo e
generalizado dos níveis de alfabetização e de cultura geral.
Castilho
não é o único no seu tempo a ter esta convicção. Os intelectuais e os homens de
cultura do século XIX alimentavam uma crença profunda na instrução como instrumento
- quase como fórmula mágica – de desenvolvimento e de progresso das nações.
Esta
crença não vê na instrução apenas um recurso individual. Eles têm a perceção de
que ela permite às populações não apenas responder, em contexto laboral, às mudanças
decorrentes da industrialização, como também ter acesso a uma participação nos
assuntos públicos e na atividade política. Ou seja, a expansão da escolarização
produziria efeitos para além do campo da produção e do trabalho, permitindo também
fortalecer o tecido social em termos cívicos e políticos, pelo aparecimento
progressivo de uma opinião pública informada, fundamental para sustentar a consolidação
do liberalismo.
Paralelamente,
é também no século XIX que o estatuto da criança como ser humano frágil e
merecedor de cuidados ganha especial força. O romantismo alimenta uma visão da
infância como um período de florescimento, delicado e sensível, para cujo
desenvolvimento harmonioso o processo educativo deveria contribuir.
Castilho
é um fervoroso defensor desta visão da infância. Poeta, escritor e tradutor,
dedicou uma boa parte da sua vida à defesa do desenvolvimento de métodos de
ensino capazes de motivar as crianças para as aprendizagens e de as conquistar
pacificamente para o trabalho escolar.
Para
esta causa, que tanto defendeu, contribuiu talvez a sua própria experiência de
uma infância frágil, com sérios problemas de saúde, dos quais acabou por
resultar a sua cegueira aos 6 anos de idade.
A sua
formação só foi possível graças à companhia fiel do seu irmão, praticamente da
mesma idade, que com ele frequentou a Universidade de Coimbra, onde ambos se
licenciaram em Cânones.
Mas
esta ideia da criança como ser frágil e delicado é corrente no romântico século
XIX. Temos manifestações dela na arte, na literatura e também, naturalmente, na
teorização pedagógica. A defesa de uma «escola centrada na criança» é um tema
que percorre diversos autores, como G. Stanley Hall, que virá a ser professor
de John Dewey, um dos pensadores com mais influência sobre a reflexão pedagógica
da segunda metade de oitocentos.
Especialmente
preocupado com a questão da aprendizagem da leitura, Castilho inventa um método
de ensino, que apresenta em 1850, e que designa como «Método Português de
Leitura Repentina».
Envolve-se,
depois, na defesa veemente, quase obstinada, da aplicação generalizada desse
seu método, escrevendo páginas e páginas a seu favor, publicadas em revistas e
jornais da época.
Progressivamente,
consegue conquistar apoios para as suas ideias, acabando por receber a
consagração oficial ao ser nomeado, em 1853, ‘Comissário-Geral de Instrução
Pública pelo Método de Leitura Repentina’.
Como
se pode ver pelo índice desta obra, a defesa do «Método português» ocupa uma
parte significativa destes seus escritos, incluindo o “Manifesto da Comissão
Geral da Instrução Primária pelo Método português no Reino e Ilhas”, que
constitui o primeiro Aditamento” (p. 119 e segs).
Na edição de 1853 do seu «Método» vem reproduzida uma gravura de Manuel Maria Bordalo Pinheiro que é uma autêntica alegoria ao pensamento de António Feliciano de Castilho.
Nela
podemos ver o ‘templo do saber’ - a escola - de onde irradiam raios de luz, a
ser expurgada dos seus males: os antigos livros são queimados numa fogueira, enquanto
as crianças exibem, como estandartes, as estampas com as letras do alfabeto,
simbolizando o ensino através de novos métodos.
E em
primeiro plano, sendo escorraçado do ‘templo do saber’, o antigo ‘mestre-escola’,
representado com um rosto de traços pouco humanos, levando consigo o mais
temido objeto da escola primária: a palmatória.
A
acompanhar esta gravura poderíamos recordar os versos do «Hino à escola»
composto por Castilho em 1849:
Sem
terror, sem vis castigos,
rindo
a escola nos atrai
Tem o
mestre em nós amigos,
temos nele amigo e pai.
Firme defensor
da escolarização, propondo multas e penalizações para os pais que não enviem os
seus filhos à escola, Castilho defende, ao mesmo tempo que esta deve ser um
lugar aprazível e de bem-estar, e a aprendizagem um processo tranquilo,
expurgado do «terror» e dos «vis castigos» que nesta época lhe estavam manifestamente
associados.
Lê-se
na Felicidade pela Instrução (p. 31):
«Cada
escola deveria ser, quanto possível, espaçosa, clara, arejada, mobilada, e
abastecida de todo o necessário, tendo cómodos para a residência do Mestre e um
terreiro ou pátio com suas sombras verdes para espairecimento dos alunos, e,
nos dias formosos, até para ali se darem lições.
Uma
aula assim, humana e hospedeira por dentro, por fora risonha e convidativa,
contribuiria admiravelmente, e melhor que raciocínios e exortações, para que o
Povo confluísse a se instruir».
As
recomendações a respeito de arejamento e iluminação que aqui encontramos têm, nesta
época, a maior importância. É no século XIX que as teorias higienistas se
difundem e que os edifícios escolares começam a ser pensados em função de
requisitos de salubridade que decorrem da evolução do pensamento médico, também
ele em profunda transformação.
A nova
conceção de vida que a medicina colhe do movimento filosófico romântico faz da
higiene e da salubridade conceitos-chave no combate e na prevenção de
enfermidades. Os passeios e os piqueniques ao campo tornam-se uma prática comum
entre a burguesia urbana de oitocentos, que artistas como Claude Monet (na
imagem aqui reproduzida) representam em tela.
A
predileção pela natureza que tão fortemente caracteriza as expressões
artísticas do movimento romântico, tem, portanto, o seu correspondente no
pensamento médico e higienista que vê no ambiente campestre um território
terapêutico e salubre. É este bucolismo um pouco ingénuo que encontramos também
aqui, na sugestão de Castilho sobre lições ao ar livre, sob a sombra das
árvores, para ‘espairecimento dos alunos’.
Numa
época em que a salubridade não era apanágio dos edifícios escolares e o quotidiano
escolar não contemplava ainda preocupações com a saúde das crianças, a defesa
deste tipo de argumentos foi fundamental para conquistar a atenção das elites e
dos decisores políticos.
Não
sendo um especialista em pedagogia, e envolvendo-se muitas vezes em polémicas
de forma excessivamente inflamada, Castilho teve a respeito da escola e da
organização do ensino uma intuição que lhe valeu o reconhecimento tanto dos
seus defensores como dos seus detratores, contribuindo expressivamente para o
debate educativo do seu tempo.
TSC
Bibliografia:
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