2012/02/08

"Felicidade pela Instrução"


(Capa da obra Felicidade pela Instrução: cartas a um jornal de Lisboa, António Feliciano de Castilho,  3ª ed. Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1909.)



Nesta obra, a que dá o nome de Felicidade pela Instrução, António Feliciano de Castilho decide reunir um conjunto de textos que foi escrevendo ao longo da década de 50 do século XIX.

Muitos deles foram sendo publicados em jornais sob a forma de «cartas» e é o próprio autor que toma a iniciativa de os reunir num só volume, ainda em 1854.

Depois dessa data, esta publicação conhecerá várias reedições, entre as quais a de 1909 que aqui reproduzimos.

Como escreve Castilho no prólogo, os textos aqui reunidos constituem “uma coleção de apontamentos, de factos, lembranças e conselhos; ou uma espécie de índice dos pontos que no assunto da instrução popular devem ser considerados”; os quais, a serem postos em prática permitiriam o “florescer de uma sociedade mais ditosa e mais digna de o ser” (p. 12).

Assim, a ‘felicidade’ de que aqui se trata não é, (ou não é apenas) a felicidade individual dos indivíduos que têm acesso à instrução. Trata-se antes de uma ideia de ‘felicidade coletiva’, dos povos e das nações, que Feliciano de Castilho acreditava só ser possível de alcançar pelo aumento decisivo e generalizado dos níveis de alfabetização e de cultura geral.


(Desenho de António Feliciano de Castilho)

Castilho não é o único no seu tempo a ter esta convicção. Os intelectuais e os homens de cultura do século XIX alimentavam uma crença profunda na instrução como instrumento - quase como fórmula mágica – de desenvolvimento e de progresso das nações.

Esta crença não vê na instrução apenas um recurso individual. Eles têm a perceção de que ela permite às populações não apenas responder, em contexto laboral, às mudanças decorrentes da industrialização, como também ter acesso a uma participação nos assuntos públicos e na atividade política. Ou seja, a expansão da escolarização produziria efeitos para além do campo da produção e do trabalho, permitindo também fortalecer o tecido social em termos cívicos e políticos, pelo aparecimento progressivo de uma opinião pública informada, fundamental para sustentar a consolidação do liberalismo.

Paralelamente, é também no século XIX que o estatuto da criança como ser humano frágil e merecedor de cuidados ganha especial força. O romantismo alimenta uma visão da infância como um período de florescimento, delicado e sensível, para cujo desenvolvimento harmonioso o processo educativo deveria contribuir.

Castilho é um fervoroso defensor desta visão da infância. Poeta, escritor e tradutor, dedicou uma boa parte da sua vida à defesa do desenvolvimento de métodos de ensino capazes de motivar as crianças para as aprendizagens e de as conquistar pacificamente para o trabalho escolar.

Para esta causa, que tanto defendeu, contribuiu talvez a sua própria experiência de uma infância frágil, com sérios problemas de saúde, dos quais acabou por resultar a sua cegueira aos 6 anos de idade.

A sua formação só foi possível graças à companhia fiel do seu irmão, praticamente da mesma idade, que com ele frequentou a Universidade de Coimbra, onde ambos se licenciaram em Cânones.

Mas esta ideia da criança como ser frágil e delicado é corrente no romântico século XIX. Temos manifestações dela na arte, na literatura e também, naturalmente, na teorização pedagógica. A defesa de uma «escola centrada na criança» é um tema que percorre diversos autores, como G. Stanley Hall, que virá a ser professor de John Dewey, um dos pensadores com mais influência sobre a reflexão pedagógica da segunda metade de oitocentos.

Especialmente preocupado com a questão da aprendizagem da leitura, Castilho inventa um método de ensino, que apresenta em 1850, e que designa como «Método Português de Leitura Repentina».

Envolve-se, depois, na defesa veemente, quase obstinada, da aplicação generalizada desse seu método, escrevendo páginas e páginas a seu favor, publicadas em revistas e jornais da época.

Progressivamente, consegue conquistar apoios para as suas ideias, acabando por receber a consagração oficial ao ser nomeado, em 1853, ‘Comissário-Geral de Instrução Pública pelo Método de Leitura Repentina’.


(Índice da obra Felicidade pela Instrução: cartas a um jornal de Lisboa, António Feliciano de Castilho,  3ª ed. Lisboa: Empreza da História de Portugal, 1909.)


Como se pode ver pelo índice desta obra, a defesa do «Método português» ocupa uma parte significativa destes seus escritos, incluindo o “Manifesto da Comissão Geral da Instrução Primária pelo Método português no Reino e Ilhas”, que constitui o primeiro Aditamento” (p. 119 e segs).

Na edição de 1853 do seu «Método» vem reproduzida uma gravura de Manuel Maria Bordalo Pinheiro que é uma autêntica alegoria ao pensamento de António Feliciano de Castilho.


(Gravura de Bordalo Pinheiro reproduzida na edição de 1853 do Método Castilho)


Nela podemos ver o ‘templo do saber’ - a escola - de onde irradiam raios de luz, a ser expurgada dos seus males: os antigos livros são queimados numa fogueira, enquanto as crianças exibem, como estandartes, as estampas com as letras do alfabeto, simbolizando o ensino através de novos métodos.

E em primeiro plano, sendo escorraçado do ‘templo do saber’, o antigo ‘mestre-escola’, representado com um rosto de traços pouco humanos, levando consigo o mais temido objeto da escola primária: a palmatória.

A acompanhar esta gravura poderíamos recordar os versos do «Hino à escola» composto por Castilho em 1849: 

Sem terror, sem vis castigos,

rindo a escola nos atrai

Tem o mestre em nós amigos,

temos nele amigo e pai.

Firme defensor da escolarização, propondo multas e penalizações para os pais que não enviem os seus filhos à escola, Castilho defende, ao mesmo tempo que esta deve ser um lugar aprazível e de bem-estar, e a aprendizagem um processo tranquilo, expurgado do «terror» e dos «vis castigos» que nesta época lhe estavam manifestamente associados.

 

Lê-se na Felicidade pela Instrução (p. 31):

«Cada escola deveria ser, quanto possível, espaçosa, clara, arejada, mobilada, e abastecida de todo o necessário, tendo cómodos para a residência do Mestre e um terreiro ou pátio com suas sombras verdes para espairecimento dos alunos, e, nos dias formosos, até para ali se darem lições.

Uma aula assim, humana e hospedeira por dentro, por fora risonha e convidativa, contribuiria admiravelmente, e melhor que raciocínios e exortações, para que o Povo confluísse a se instruir».

As recomendações a respeito de arejamento e iluminação que aqui encontramos têm, nesta época, a maior importância. É no século XIX que as teorias higienistas se difundem e que os edifícios escolares começam a ser pensados em função de requisitos de salubridade que decorrem da evolução do pensamento médico, também ele em profunda transformação.


(Quadro de Claude Monet, Le déjeuner sur l' herbe, 1865-1866)


A nova conceção de vida que a medicina colhe do movimento filosófico romântico faz da higiene e da salubridade conceitos-chave no combate e na prevenção de enfermidades. Os passeios e os piqueniques ao campo tornam-se uma prática comum entre a burguesia urbana de oitocentos, que artistas como Claude Monet (na imagem aqui reproduzida) representam em tela.

A predileção pela natureza que tão fortemente caracteriza as expressões artísticas do movimento romântico, tem, portanto, o seu correspondente no pensamento médico e higienista que vê no ambiente campestre um território terapêutico e salubre. É este bucolismo um pouco ingénuo que encontramos também aqui, na sugestão de Castilho sobre lições ao ar livre, sob a sombra das árvores, para ‘espairecimento dos alunos’.

Numa época em que a salubridade não era apanágio dos edifícios escolares e o quotidiano escolar não contemplava ainda preocupações com a saúde das crianças, a defesa deste tipo de argumentos foi fundamental para conquistar a atenção das elites e dos decisores políticos.

Não sendo um especialista em pedagogia, e envolvendo-se muitas vezes em polémicas de forma excessivamente inflamada, Castilho teve a respeito da escola e da organização do ensino uma intuição que lhe valeu o reconhecimento tanto dos seus defensores como dos seus detratores, contribuindo expressivamente para o debate educativo do seu tempo.

 

TSC

 

Bibliografia:

Albuquerque, Luis de, e Mourão-Ferreira, David (1976). António Feliciano de Castilho: educador, poeta. Lisboa: [s.n.].

Castilho, Júlio de (1881). Memórias de António Feliciano de Castilho. Lisboa, Academia Real das Ciências.

Grmek, Mirko D. (1999). Histoire de la pensée médicale en Occident. Vol 3: Du romantisme à la science moderne. Paris: Éditions du Seuil.

Magalhães, Justino (2003). Castilho, António Feliciano de, in António Nóvoa (Dir.), Dicionário de Educadores Portugueses, Porto: ASA, 311-316.

Nóvoa, António (2005). Evidentemente: histórias da educação. Porto: ASA.

Reis, Carlos, Dir. (2001), História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. 5: O Romantismo. Lisboa: Verbo.