2010/09/01

Almada Negreiros - o ilustrador

 

Resumo:

A análise seguinte baseia-se na ilustração da capa do livro Leituras para o ensino técnico. São apresentadas, grosso modo, as grandes influências de Almada – pitagóricas e helenísticas. Através destes conceitos procede-se à hermenêutica da capa do referido manual escolar. Os exemplares analisados pertencem à coleção da Biblioteca Histórica da Educação (Secretaria-Geral do Ministério da Educação).

 

 

O pintor, escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista, oriundo da Ilha de São Tomé – José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) - também foi ilustrador insigne de manuais escolares. Ainda pouco divulgado, Almada foi um ilustrador de material didático, durante o Estado Novo, impregnando a este material traços modernistas, como se pode verificar pela fotografia anterior.

Almada foi um pintor-pensador, na medida em que a arte de elaborar e recriar formas trespassa os seus impulsos estéticos, em prol de uma “tabuada geométrica”. Dito de outro modo, a essência da criatividade de Almada reside no número. São vários os estudiosos que se referem à criatividade de Almada como uma geometria sagrada repleta de significados poéticos.

“[…] Almada Negreiros interessou-se também pelo tema no âmbito da sua demanda da chave do Conhecimento (tendo sido, aliás, no contexto dessa busca que aprofundou o estudo sobre a cultura da Antiga Grécia e sobre a Aritmética, baseando-se no princípio do Número perfeito – o theleon de Pitágoras […]” (Mourão, 2010:24)

Como afirma Mourão (2010:24), a inquietude de Almada impele-o na procura da sageza no berço da cultura europeia, encontrando-a nos pensadores helenos. O pré-socrático Pitágoras é, então, uma espécie de theleon ou guerra de opostos que inspira Almada na incessante busca da perfeição.

Nesta perspetiva, as influências de Almada recaem sobre as doutrinas pitagóricas. Esta corrente interessava-se, sobretudo, pelo estudo das propriedades dos números (αριθμός)1, pois estes eram sinónimo de harmonia. Os números pares e os números impares, nesta corrente filosófica, expressam correlações através de permanentes processos de mutação. A essência do pitagorismo fundamenta-se no principio de que o número é o principio fundamental das coisas, ou seja, o número é o elo de ligação entre elementos naturais e/ou metafísicos.

Esta filosofia foi profundamente assimilada por Almada Negreiros e, por sua vez, posta em prática nas suas obras de arte, nomeadamente da monografia Leitura para o ensino técnico datada de 1948.

O símbolo gráfico da Escola pitagórica é o pentagrama (̟εντάγραμμος). Esta figura nada mais é do que uma estrela composta por cinco retas e cinco pontas. Por conseguinte, o pentagrama é obtido através de linhas diagonais traçadas num pentágono regular, por sua vez, pela interseção dos segmentos desta diagonal, é obtido um novo pentágono regular, proporcional à figura original.

Se examinarmos a capa da referida monografia verificamos que esta apresenta uma profunda inspiração neopitagórica. Almada transforma o misticismo do pentagrama num conjunto de linhas retas que preenchem toda a capa. Há, por assim dizer, um jogo de losangos que formam grupos de perpendiculares pares e ímpares, contrastadas pela cor. Ou seja, as referidas perpendiculares, formam uma única figura geométrica e, simultaneamente, isolam cada figura per si. Há, por assim dizer, uma geometria poética traçada com régua e transferidor.

A obsessão pelo número em Almada torna-o pioneiro em Portugal no abstracionismo. Esta filosofia pitagórica assimilada por Almada é uma metáfora geométrica. A este respeito, recordamos a tapeçaria de 1958 intitulada O Número 2 que podemos contemplar no Tribunal de Contas. Não menos metafórica é a obra deste mesmo autor intitulada O contador 3 datado de 1947 que ainda é o e.x libris do mesmo tribunal.

O Contador representa uma balança sustentada por números. Este conjunto de símbolos ocultava uma sabedoria a ser revelada, uma espécie de misticismo e enigma repleto de categorias morais (“o que é” vs “o que pode ser mais”). O número sustenta a balança, ou seja, existem rasgos poéticos modernistas sustentados por axiomas (números) que proíbem a fraude e a ambição (ninguém passa por cima da balança).

Perante o exposto, somos levados a crer que a estética de Almada reside no sentido enigmático das “coisas ouvidas” (Aκούωµατα) 4, ou seja, na educação sucessiva dos sentidos de uma forma eclética: a sageza estende-se a todos os domínios. A akousmata era, por um lado, a forma de libertação do espírito e, por outro, a educação dos sentidos para reeducar a perceção.

Teremos que considerar que o Mestre Almada, como ilustrador, inscreve nas capas de alguns manuais escolares um Modernismo esculpido com matéria-prima que se perde in illo tempore. Na capa do manual escolar acima referenciada, verificamos que a abstração geométrica, aparentemente simplista, encerra em si um conjunto de conceitos que escapam aos olhares mais desatentos segundo entendemos, estamos ainda perante uma tela com grande influência do Ponto de Bauhüte. 5

“[O Ponto de Bauhüte] um ponto que e4stá no círculo. E que se põe no quadrado e no triângulo. Conheces o ponto? Tudo vai bem. Não conheces? Tudo está perdido.” (Reis, 2007: 34)

Mais uma vez, o segredo da estética de Almada encontra-se nas “coisas ouvidas”, o Ponto de Bauhüte era um dos segredos – sinais lapidares e siglas – que no período bizantino eram constituídos por letras de nomes reunidas em monograma e, no período gótico, esses mesmos sinais eram traçados geometricamente desprovidos desses carateres alfabéticos. Assim, Ponto de Bauhüte é, seguramente, o segredo geométrico dos mestres construtores do gótico, só acessíveis a eles mesmos.

Almada era conhecedor destes enigmas, testemunho deste facto é o painel Começa (1968/1969) 6, gravado em pedra no átrio de entrada do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian e que foi uma das últimas obras do autor. O painel consiste na sobreposição de alguns traçados geométricos resultando numa construção geométrica intrincada, onde linhas retas e linhas curvas se cruzam através de traçados que entrelaçam o pentágono e o hexágono inscritos no círculo.

“O painel Começar é uma impressionante obra de arte abstrata, que o tempo e a localização tornaram um clássico. Além de revelar o interesse do autor pelas questões da geometria secreta dos artistas antigos, é paradigmático de um espírito sedento de verdade e beleza, qualidades intemporais.” (Reis, 2007:35)

Na verdade, o painel em questão é um enigma secreto de técnicas e símbolo da arte abstrata portuguesa (Reis, 2007:35). Os críticos são unânimes em considerarem o painel Começar de 1968/69 como o protótipo da técnica do Ponto de Bauhüte. Não obstante, a capa do manual escolar Leituras para o ensino técnico, apesar do depósito legal ser de 1956 e a assinatura de Almada na capa de 1948, apresenta influências neopitagóricas e, segundo pensamos, apresenta também notórios rasgos técnicos do Ponto de Bauhüte.




Se nos detivermos na figura seguinte (Figura 1), verificamos que este esboço de Almada é bem exemplificativo dos seus conhecimentos do Ponto de Bauhüte. Ou seja, verificamos que existe um ponto interior ao círculo que determina o quadro e o triângulo equilátero inscrito – estes são os traços de Almada.




A capa de Leituras para o ensino técnico, a seu modo, respeita os traços originais de tal técnica. Entre as letras E/A e T/U, encontra-se o ponto central da capa (um ponto que está no círculo). A partir deste ponto é desenhado um grande losango que engloba as letras E/T/U/A, por sua vez, dentro deste último brotam quatro losangos similares representados pelas letras E, T, U, A. Como verificamos, a capa estudada segue, de certo modo o esquema de Almada do do Ponto de Bauhüte.

A partir do ponto inicial, nascem conjuntos de figuras geométricas que se prolongam ad infinitum – esta ideia transparece quando olhamos a capa como um todo, na medida em que os traços incompletos (traços pretos) recomeçam novas figuras. A incompletude geométrica idealizada por Almada não é sinónimo de imperfeição, antes, amplia a perspetiva de horizonte, dando-lhe um “prolongamento” matemático onde as figuras geométricas se cruzam na imaginação.

Em Almada, o número tem um sentido transcendental – figura do mundo das ideias e não um mero objeto de cálculo. Desta forma, o número é um jogo estético para a recriação do mundo de uma forma abstrata e representativa de harmonia – o número é ser em todas as categorias, no verdadeiro sentido aristotélico.




Não podemos olvidar-nos de que Almada, para além de ilustrador era também ensaísta com conhecimentos de filosofia antiga. Esta procurava a beleza e, simultaneamente, as essências do conhecimento (ideias). O aglomerado de letras, aparentemente dispersas nos losangos (sendo o título da capa diferente do título de rosto) são um puzzle que responde às exigências “espirituais” dos epicuristas. Para além de um jogo de letras é possível denotar, com alguma facilidade, a máxima: A LEI É TUA – imperativo tão caro à filosofia helenística (as verdadeiras leis estão inscritas no coração).

Se na década da Geração de Orpheu 7, Almada era considerado como um caricaturista-humorista, foi na sua estadia em Madrid, entre 1927-32, que começou a amadurecer os seus traços e a incorporar alguns traços cubistas nos seus trabalhos. A influência de Picasso em Almada levou a uma osmose entre o cubismo e o neoclassicismo.

Nos finais dos anos 40, Almada vai mais longe nos seus impulsos estéticos, rompe com qualquer tipo de academismo e adota uma lógica de descendência cubista sempre fiel à linearidade e à precisão Matemática. Não obstante, Almada não é um cubista por excelência, ainda que seja notória a influência de Picasso na obra de Almada, este emancipa-se e enreda-se na teia do Futurismo.


P. M. 

 

Bibliografia:

 

COELHO, João Furtado (1994). Os princípios de Começar. Revista Colóquio/Artes, n.º 100, p. 8-23.

FREITAS, Lima de (1977). Almada e o Número. Lisboa: Editora Arcádia.

GONÇALVES, Rui Mário (2005). Almada Negreiros. Lisboa: Editorial Caminho.

MOURÃO, Cátia (ca 2010). Erros e Psique: um vitral gnóstico de Almada Negreiros [on-line]. Assembleia da República, Divisão de Edições.

http://www.arteseleiloes.com/uploads/docs/Eros_e_Psique_Catia_Mourao.pdf

[Consulta: agosto de 2010]

REIS, Luís (2007). Começar por Almada Negreiros ou Ode à Geometria [on-line]. Educação e Matemática, n.º 92 (Mar. Abr., 2007)

http://www.apm.pt/matearte/revista/CPANOG-LR-EM-MarAbr-p32-35.pdf

[Consulta: agosto de 2010]

SOUSA, Vasco Frederico Pires (ca 2000). Almada Neopitagórico [on-line]. Esta página foi elaborada no âmbito da cadeira do 4.º ano da licenciatura em Ensino da Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Seminário Temático.

http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/almada/neopitagor.htm

[Consulta: agosto de 2010]



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1 Etimologicamente, αριθμός (arithmós) é a palavra grega para número, adições, subtrações multiplicações, etc.

2 Almada Negreiros. O Número. Tribunal de Contas de Lisboa, 1958. (1024 x 644 cm).

3 Almada Negreiros. O Contador: Ex-libris do Tribunal de Contas, 1947. (300 x 399 cm).

4 Em grego antigo κούωµατα (Akousmata) significa etimologicamente “coisas ouvidas. A filosofia pitagórica entendia a Akousmata uma forma de educação dos sentidos por meio da audição.

5 Entre os séculos VIII e XI, as grandes abadias beneditinas agruparam à sua volta escolas de arquitetos dirigidas por monges dessa mesma ordem. Esses agrupamentos (artesãos, pedreiros, eclesiásticos) conservavam os documentos textuais da estética arquitetónica da Grécia Antiga e de Alexandria, que chegaram até nós e inspiraram profundamente a filosofia pitagórica do número. Com esta informação secreta, as cruzadas, mantendo intima ligação com a Igreja, organizaram sociedades semissecretas laicas e criaram a Bauhütte esta associação era, de certo modo, um prolongamento dos antigos colégios de construtores anteriores à queda do Império Romano do Ocidente.

6 Almada Negreiros. Começar. 1968/69, (261 x 278) Fundação Calouste Gulbenkian.

7 Na revista trimestral de literatura Orpheu (apenas 2 números publicados nos primeiros dois trimestres de 1915) revelam-se várias tendências que vão desde o Simbolismo, Decadentismo até ao Futurismo. Entre alguns vultos da cultura portuguesa destacamos os seguintes: Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa publica a Ode Triunfal (1915) e a Ode Marítima; Sá Carneiro, A Manicure (1915); Almada Negreiros, O Manifesto Anti-Dantas (1916) e Ultimatum Futurista às Gerações Portuguezas do século XX. O grupo, entretanto, continuou a publicar noutras revistas e, em 1917, surgiu a revista Portugal Futurista, onde foram reproduzidos quadros de Santa Rita Pintor e Sousa Cardoso, juntamente com poemas futuristas de Sá Carneiro (póstumos) e Pessoa, sobretudo sob o seu heterónimo de Álvaro de Campos.