Resumo:
A
análise seguinte baseia-se na ilustração da capa do livro Leituras para o ensino técnico. São apresentadas, grosso modo, as
grandes influências de Almada – pitagóricas e helenísticas. Através destes
conceitos procede-se à hermenêutica da capa do referido manual escolar. Os
exemplares analisados pertencem à coleção da Biblioteca Histórica da Educação
(Secretaria-Geral do Ministério da Educação).
O
pintor, escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista, oriundo da Ilha de
São Tomé – José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970) - também foi ilustrador
insigne de manuais escolares. Ainda pouco divulgado, Almada foi um ilustrador
de material didático, durante o Estado Novo, impregnando a este material traços
modernistas, como se pode verificar pela fotografia anterior.
Almada
foi um pintor-pensador, na medida em que a arte de elaborar e recriar formas
trespassa os seus impulsos estéticos, em prol de uma “tabuada geométrica”. Dito
de outro modo, a essência da criatividade de Almada reside no número. São
vários os estudiosos que se referem à criatividade de Almada como uma geometria
sagrada repleta de significados poéticos.
“[…]
Almada Negreiros interessou-se também pelo tema no âmbito da sua demanda da
chave do Conhecimento (tendo sido, aliás, no contexto dessa busca que
aprofundou o estudo sobre a cultura da Antiga Grécia e sobre a Aritmética,
baseando-se no princípio do Número perfeito – o theleon de Pitágoras […]” (Mourão, 2010:24)
Como
afirma Mourão (2010:24), a inquietude de Almada impele-o na procura da sageza no
berço da cultura europeia, encontrando-a nos pensadores helenos. O
pré-socrático Pitágoras é, então, uma espécie de theleon ou guerra de opostos que inspira Almada na incessante busca
da perfeição.
Nesta
perspetiva, as influências de Almada recaem sobre as doutrinas pitagóricas.
Esta corrente interessava-se, sobretudo, pelo estudo das propriedades dos números
(αριθμός)1, pois
estes eram sinónimo de harmonia. Os números pares e os números impares, nesta
corrente filosófica, expressam correlações através de permanentes processos de
mutação. A essência do pitagorismo fundamenta-se no principio de que o número é
o principio fundamental das coisas, ou seja, o número é o elo de ligação entre
elementos naturais e/ou metafísicos.
Esta
filosofia foi profundamente assimilada por Almada Negreiros e, por sua vez,
posta em prática nas suas obras de arte, nomeadamente da monografia Leitura para o ensino técnico datada de
1948.
O
símbolo gráfico da Escola pitagórica é o pentagrama (
Se
examinarmos a capa da referida monografia verificamos que esta apresenta uma
profunda inspiração neopitagórica. Almada transforma o misticismo do pentagrama
num conjunto de linhas retas que preenchem toda a capa. Há, por assim dizer, um
jogo de losangos que formam grupos de perpendiculares pares e ímpares,
contrastadas pela cor. Ou seja, as referidas perpendiculares, formam uma única
figura geométrica e, simultaneamente, isolam cada figura per si. Há, por assim
dizer, uma geometria poética traçada com régua e transferidor.
A
obsessão pelo número em Almada torna-o pioneiro em Portugal no abstracionismo.
Esta filosofia pitagórica assimilada por Almada é uma metáfora geométrica. A
este respeito, recordamos a tapeçaria de 1958 intitulada O Número 2 que podemos contemplar no Tribunal de
Contas. Não menos metafórica é a obra deste mesmo autor intitulada O contador 3 datado de 1947 que ainda é o e.x libris
do mesmo tribunal.
O Contador
representa uma balança sustentada por números. Este conjunto de símbolos
ocultava uma sabedoria a ser revelada, uma espécie de misticismo e enigma repleto
de categorias morais (“o que é” vs “o que pode ser mais”). O número sustenta a
balança, ou seja, existem rasgos poéticos modernistas sustentados por axiomas
(números) que proíbem a fraude e a ambição (ninguém passa por cima da balança).
Perante
o exposto, somos levados a crer que a estética de Almada reside no sentido
enigmático das “coisas ouvidas” (Aκούωµατα) 4, ou seja, na educação sucessiva dos sentidos de uma forma
eclética: a sageza estende-se a todos os domínios. A akousmata era, por um lado, a forma de libertação do espírito e,
por outro, a educação dos sentidos para reeducar a perceção.
Teremos que considerar que o Mestre Almada, como ilustrador,
inscreve nas capas de alguns manuais escolares um Modernismo esculpido com
matéria-prima que se perde in illo
tempore. Na capa do manual escolar acima referenciada, verificamos que a
abstração geométrica, aparentemente simplista, encerra em si um conjunto de
conceitos que escapam aos olhares mais desatentos segundo entendemos, estamos
ainda perante uma tela com grande influência do Ponto de Bauhüte. 5
“[O Ponto de Bauhüte] um ponto que e4stá no círculo. E que se põe no
quadrado e no triângulo. Conheces o ponto? Tudo vai bem. Não conheces? Tudo
está perdido.” (Reis, 2007: 34)
Mais uma vez, o segredo da estética de Almada encontra-se nas
“coisas ouvidas”, o Ponto de Bauhüte
era um dos segredos – sinais lapidares e siglas – que no período bizantino eram
constituídos por letras de nomes reunidas em monograma e, no período gótico,
esses mesmos sinais eram traçados geometricamente desprovidos desses carateres alfabéticos.
Assim, Ponto de Bauhüte é,
seguramente, o segredo geométrico dos mestres construtores do gótico, só
acessíveis a eles mesmos.
Almada
era conhecedor destes enigmas, testemunho deste facto é o painel Começa (1968/1969) 6, gravado em pedra no átrio de entrada do
edifício da Fundação Calouste Gulbenkian e que foi uma das últimas obras do
autor. O painel consiste na sobreposição de alguns traçados geométricos
resultando numa construção geométrica intrincada, onde linhas retas e linhas
curvas se cruzam através de traçados que entrelaçam o pentágono e o hexágono inscritos
no círculo.
“O
painel Começar é uma impressionante
obra de arte abstrata, que o tempo e a localização tornaram um clássico. Além
de revelar o interesse do autor pelas questões da geometria secreta dos
artistas antigos, é paradigmático de um espírito sedento de verdade e beleza,
qualidades intemporais.” (Reis, 2007:35)
Na
verdade, o painel em questão é um enigma secreto de técnicas e símbolo da arte
abstrata portuguesa (Reis, 2007:35). Os críticos são unânimes em considerarem o
painel Começar de 1968/69 como o
protótipo da técnica do Ponto de Bauhüte. Não obstante, a capa do
manual escolar Leituras para o ensino
técnico, apesar do depósito legal ser de 1956 e a assinatura de Almada na
capa de 1948, apresenta influências neopitagóricas e, segundo pensamos,
apresenta também notórios rasgos técnicos do Ponto de Bauhüte.
Se nos detivermos na figura seguinte (Figura 1), verificamos
que este esboço de Almada é bem exemplificativo dos seus conhecimentos do Ponto de
Bauhüte. Ou seja, verificamos que
existe um ponto interior ao círculo que determina o quadro e o triângulo equilátero
inscrito – estes são os traços de Almada.
A capa de Leituras para
o ensino técnico, a seu modo, respeita os traços originais de tal técnica.
Entre as letras E/A e T/U, encontra-se o ponto central da capa (um ponto que
está no círculo). A partir deste ponto é desenhado um grande losango que
engloba as letras E/T/U/A, por sua vez, dentro deste último brotam quatro
losangos similares representados pelas letras E, T, U, A. Como verificamos, a
capa estudada segue, de certo modo o esquema de Almada do do Ponto de
Bauhüte.
A
partir do ponto inicial, nascem conjuntos de figuras geométricas que se
prolongam ad infinitum – esta ideia
transparece quando olhamos a capa como um todo, na medida em que os traços
incompletos (traços pretos) recomeçam novas figuras. A incompletude geométrica
idealizada por Almada não é sinónimo de imperfeição, antes, amplia a perspetiva
de horizonte, dando-lhe um “prolongamento” matemático onde as figuras
geométricas se cruzam na imaginação.
Em
Almada, o número tem um sentido transcendental – figura do mundo das ideias e
não um mero objeto de cálculo. Desta forma, o número é um jogo estético para a
recriação do mundo de uma forma abstrata e representativa de harmonia – o número
é ser em todas as categorias, no verdadeiro sentido aristotélico.
Não
podemos olvidar-nos de que Almada, para além de ilustrador era também ensaísta com
conhecimentos de filosofia antiga. Esta procurava a beleza e, simultaneamente,
as essências do conhecimento (ideias). O aglomerado de letras, aparentemente
dispersas nos losangos (sendo o título da capa diferente do título de rosto)
são um puzzle que responde às exigências “espirituais” dos epicuristas. Para
além de um jogo de letras é possível denotar, com alguma facilidade, a máxima:
A LEI É TUA – imperativo tão caro à filosofia helenística (as verdadeiras leis
estão inscritas no coração).
Se na
década da Geração de Orpheu 7, Almada era considerado como um
caricaturista-humorista, foi na sua estadia em Madrid, entre 1927-32, que
começou a amadurecer os seus traços e a incorporar alguns traços cubistas nos
seus trabalhos. A influência de Picasso em Almada levou a uma osmose entre o
cubismo e o neoclassicismo.
Nos
finais dos anos 40, Almada vai mais longe nos seus impulsos estéticos, rompe
com qualquer tipo de academismo e adota uma lógica de descendência cubista
sempre fiel à linearidade e à precisão Matemática. Não obstante, Almada não é
um cubista por excelência, ainda que seja notória a influência de Picasso na
obra de Almada, este emancipa-se e enreda-se na teia do Futurismo.
P. M.
Bibliografia:
COELHO,
João Furtado (1994). Os princípios de Começar. Revista Colóquio/Artes, n.º 100, p. 8-23.
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Lima de (1977). Almada e o Número.
Lisboa: Editora Arcádia.
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Rui Mário (2005). Almada Negreiros. Lisboa: Editorial Caminho.
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[on-line]. Assembleia da República, Divisão de Edições.
http://www.arteseleiloes.com/uploads/docs/Eros_e_Psique_Catia_Mourao.pdf
[Consulta:
agosto de 2010]
REIS,
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Abr., 2007)
http://www.apm.pt/matearte/revista/CPANOG-LR-EM-MarAbr-p32-35.pdf
[Consulta:
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SOUSA,
Vasco Frederico Pires (ca 2000). Almada Neopitagórico [on-line]. Esta página
foi elaborada no âmbito da cadeira do 4.º ano da licenciatura em Ensino da
Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Seminário
Temático.
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/almada/neopitagor.htm
[Consulta:
agosto de 2010]
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