Francisco de Almeida Grandella (Aveiras de
Cima, 23 de junho de 1853 – Foz do Arelho, 20 de setembro de 1934),é uma figura
incontornável do empreendedorismo e espírito irrequieto de um homem de negócios
que via claramente para além do seu tempo. A sua vida passou por momentos
marcantes da história nacional da segunda metade do século XIX e prolongar-se-ia
pelos períodos ainda mais conturbados que caracterizariam os antecedentes e a
instauração da República e posteriormente a criação do Estado Novo. Com efeito,
com a Regeneração, o Fontismo, o Ultimato inglês, a revolta republicana do
Porto em 1891, o regicídio de 1908, a instauração da República, a participação
portuguesa na I Grande Guerra, o golpe militar de 28 de maio de 1926, a
instauração da Ditadura Militar, a chegada de Oliveira Salazar ao governo em
1928 e a posterior publicação da Constituição de 1933, chegariam só por si para
enquadrar a figura de Grandella num ambiente político-social assaz particular.
Com apenas 12 anos, e a pedido do
pai, vai para Lisboa, trabalhar no número 253 da rua dos Fanqueiros, afim de
substituir o seu irmão Eduardo, que se encontrava gravemente doente. Por lá se
manteve cerca de 3 anos, após os quais, e na sequência do trespasse da loja
pelo patrão a um caixeiro, sem que o promovesse, que Francisco Grandella relata
na primeira pessoa: “ Foi até quando o
Ferreira Martins (patrão) trespassou a loja a um seu caixeiro, o Manuel Luís de
Macedo e eu fomos também no negócio como se fizéssemos parte dos trastes da
casa. Ao meu pai não lhe agradou que fosse vendido como um escravo, chamou-me
para casa.”, prosseguindo “(…) por
isso mandava-lhe pedir para no domingo de manhã mandar uma cavalgadura à
Azambuja, porque eu parto daqui às quatro horas da manhã (no comboio), o mais
eu à vista lhe contarei.” (2)
De regresso a Aveiras de Cima,
aproveitou para estudar e aprofundar a língua francesa com o eminente professor
Teodoro José da Silva, fato que mais tarde muito contribuiria para o sucesso
comercial dos Armazéns Grandella e Cª, após uma visita a Paris. Por volta de
1870, regressa de novo a Lisboa e à rua dos Fanqueiros nº 173 e 175, onde se
emprega no balcão. Permanece nessa casa 4 anos, após os quais muda para a loja
de fancaria de António Marques da Silva, na rua da Prata, nº 111 e 113,
assumindo aqui a direção da loja e onde permaneceu cerca de 8 ou 9 anos. Durante
este período, e tomando conhecimento que o Banco Hipotecário estava a vender
umas propriedades na sua terra natal, Francisco Grandella adquiriu-as e passou
a administra-las. Homem trabalhador, mas resoluto, um dia aziago leva-o a “pespegar dois bofetões num marçano” (3),
advindo daqui o seu pedido de demissão do emprego, na exata medida que o
ofendido era familiar do patrão. Conquanto tudo parecia perdido no mundo do
comércio de fazendas, Grandella encontra-se com Francisco da Conceição Silva, caixeiro
e sócio do seu irmão Luís, com armazéns de farinha e fábrica de bolachas em
Santo Amaro, que lhe propõe um empréstimo para que se estabeleça por conta
própria. Após hesitação inicial, aceita as condições do empréstimo e em poucos
dias encontra-se a fazer cartões com o nome “Grandella
& Cia”, estabelecendo-se na rua da Prata, nº 112 e 114, sob o nome
apelativo de firma “Fazendas Baratas”.
Nascia o nome e o mito Grandella. Com uma publicidade aguerrida e direcionada
para o grande público, em breve adquire nome e projeção na capital, na
província, nas ilhas e até nas colónias. Revoluciona o mercado com a venda por
correspondência, com direito a envio por correio e devolução, no caso de não
aceitação por parte do cliente. Publica e distribui catálogos dos produtos que
comercializa, operacionalizando uma verdadeira inovação/ revolução na relação
com o cliente final. Com o negócio a prosperar, em breve adquire por trespasse
uma loja a um judeu estabelecido no Rossio, a que apropriadamente chama de “Loja do Povo”. Com o negócio sempre em
crescendo, adquirindo novas técnicas do que hoje apelidamos de marketing agressivo, contrata um
“criado-reclamo”, vestindo-o de soldado inglês e trajando de vermelho. Malgrado
a troça da petizada, o sucesso comercial foi estrondoso, contribuindo para a
abertura de outra loja de fazendas em 1890, desta feita estabelecida na rua do
Ouro, com o apelativo nome de “O Novo
Mundo”. Lisboa grandellizava-se,
colocando fim ao pequeno mercador e criando o comerciante empreendedor, ousado
e com espírito de risco comercial. Estava encontrada a forma para o sucesso
retumbante nesta área de negócio. Nesta altura, Grandella já era o proprietário
do Teatro Novo da Rua dos Condes (onde atualmente está o Hard Rock Café de Lisboa), que mandara reconstruir e onde
funcionava uma “das mais elegantes e
confortáveis salas de espetáculos da cidade”, conforme noticiava o Diário
de Notícias no dia de consoada de 1888. Nos subterrâneos do Teatro Novo,
funcionava o Clube dos Makavenkos, um
grupo de boémios, que se apresentava como sociedade gastronómica. Deste período
datam também a criação de fábricas de malhas, tecidos, fiação e móveis de ferro
em Benfica, onde mais tarde iria criar o bairro Grandella, em São Domingos de
Benfica, composto por habitações sociais com rendas vantajosas para as centenas
de operários, uma escola primária e uma creche para os filhos dos trabalhadores.
Em finais de Oitocentos,
Grandella desloca-se a grandes centros industriais ingleses de manufatura de
tecidos e fiação (Manchester, Birmingham e Londres), regressando por Paris,
onde se fascinou pelos Armazéns Printemps
da cidade-luz. Inebriado pela visita parisiense, adquire em 1903 um grande
prédio na rua Nova do Carmo, cujas traseiras ligavam com a loja “O Novo Mundo”, na rua do Ouro.
Contratou o arquiteto francês Georges Demay, o mesmo que projetara os Armazéns Printemps parisienses e em 7 de abril de
1907 inaugurou os sumptuosos e luxuosos Grandes Armazéns Grandella. Composto de
10 pisos, e com uma área comercial jamais vista em Portugal, os Armazéns
Grandella foram um marco indissociável da cidade e da vida comercial do país
durante 8 décadas, até ao incêndio que destruiu todo o interior a 25 de agosto
de 1988. (4)
As escolas primárias “à margem do
Plano dos Centenários” do benemérito Francisco Grandella e o ideal
republicano da democratização da instrução das populações
Embora tenhamos destacado o
espírito empreendedor e comercial do senhor Grandella, existem ainda outras
facetas que importará seguramente aludir. Além de republicano – o Partido
Republicano Português elegeu-o vereador municipal na Câmara Municipal nas
eleições de 1908, não tanto pelos dotes políticos, mas antes pela figura e
estatuto que detinha na cidade de Lisboa -, maçon filiado na Loja José Estêvão,
sob o nome de “Pilatos” -, foi também um benemérito com um contributo incontornável
para a erradicação da iliteracia e a alfabetização num país profundamente
atrasado. Com a construção das escolas Francisco Grandella, o país teve
seguramente uma mais valia para a instrução da população em geral. Apaixonado
pela questão da educação em Portugal, pelo modelo educativo alemão e pelas
escolas móveis, foi na Foz do Arelho, onde tinha uma casa de veraneio, que
Grandella, com o apoio de Miss Stella Stuart – uma inglesa que teria conhecido
em 1904 num dos jantares do já citado “O
Clube dos Makavenkos” – e do professor Casimiro Freire, que dinamizaram
entre 1904 e 1906 várias missões educativas. Cada missão, com a duração de 4
meses, compunha-se de 90 lições, baseadas no método do pedagogo João de Deus.
Com efeito há notícias, que em fevereiro de 1905 tivera lugar a 127ª aula na
Foz do Arelho, sendo que em julho desse ano o filho do poeta, João de Deus
Ramos, assistira às provas finais de exame. Era convicção do professor Casimiro
Freire, e de toda a equipa que liderava, que replicando o modelo das escolas
móveis e adotando concelho a concelho de todo o país este modelo pedagógico,
todos os indivíduos dos 6 aos 60 anos saberiam ler, por alturas do centenário
do nascimento do pedagogo, que ocorreria em 1936. Embora fosse uma iniciativa
de louvar, cremos que na prática não teve reais resultados.
No recenseamento que conseguimos
identificar, apenas localizamos 6 escolas mandadas construir por iniciativa de
Francisco Grandella. Obedecendo a um modelo arquitetónico regular, são
construções térreas, encimadas por um frontão triangular, estilo neoclássico,
com 4 ou 6 colunas de traça clássica (6 colunas no caso do bairro Grandella, em
Lisboa ou na terra natal), os elementos base, fruste e capitel sem motivos
decorativos, e quase sempre com ligações a figuras republicanas. A primeira
escola, construída em Aveiras de Cima, foi inaugurada em 1906 e tem no frontão
triangular a inscrição “Escola Primária Francisco Maria de Almeida Grandella”.
Do mesmo ano, construi-se também a Escola Afonso Costa, no bairro de São
Domingos de Benfica, agregada a uma creche e um bairro residencial para os
operários do Grandella.
Em Tagarro, no concelho de
Alcoentre, é também inaugurada a respetiva Escola Primária em 21 de agosto de
1910, sendo-lhe atribuído o nome de Augusto José da Cunha, professor e Par do
Reino, que aderiu ao Partido Republicano Português em 1907. Esta escola contou
com a presença de Afonso Costa, figura incontornável dos primeiros anos da
República e a quem Grandella envia a 1 de agosto de 1910 uma carta com
informação bem impressiva, que valerá a pena transcrever: “Parecia-me político inaugurar a escola de Tagarro imediatamente,
embora abra só para o começo do ano letivo.” Ainda em 1910, e já proclamada
a República nos Paços do Concelho de Lisboa e transmitida para todo o país via
telégrafo, é inaugurada a 20 de outubro a Escola Bernardino Machado na Foz do
Arelho, precedida a 13 do mesmo mês pela Escola França Borges, em Nadadouro,
localidade perto da Foz do Arelho. Como momento político de exceção, tinham
apenas passado 8 dias desde a proclamação da República, nesta inauguração o
jornal O Círculo das Caldas, dá
notícia da presença de grandes nomes da recém instaurada República. Por
fim, no ano de 1918, há notícia de mais uma escola primária, desta vez a Escola
de Lameira de São Pedro, freguesia do Luso, onde Grandella possuía um chalé.
Com pequenas nuances na decoração
exterior, as escolas obedeciam a um padrão arquitetónico relativamente regular.
No caso da escola e creche de Benfica (na antiga escola primária, atualmente
funciona uma secção do Museu República e Resistência), os elementos
arquitetónicos são de inspiração maçónica, com um frontão triangular contendo a
estrela vermelha de 5 pontas. Em baixo da estrela, constam os selos do Conselho
da Ordem do Grande Oriente Lusitano e que Francisco Grandella mandava replicar
na fina louça da Vista Alegre. Na Escola de Benfica, consta em listel, o lema “Sempre por bom caminho e Segue” – tal
como podemos constatar na fachada principal dos Grandes Armazéns Grandella, após
o incêndio de agosto de 1988 -, envolvido numa coroa de louros. (5). Nas escolas do Nadadouro, Foz do
Arelho e Luso, constam o nome do fundador. (6)
Proposta de (re)
visionamento:
DVD “A Canção de Lisboa” da coleção “Os Anos de Ouro Cinema Português” (03),
de Cottinelli Telmo, Tobis Portuguesa, estreado no Teatro de São Luís a 7 de
novembro de 1933.
A.M.
(1) Oliveira, Maria José (2018). “A história de Francisco Grandella: maçon, boémio e visionário” [em linha]. In: Diário de Noticias (26 de agosto de 2018). [Consut. 4 de agosto de 2022]. Disponível: <https://www.dn.pt/1864/grandella-macon-boemio-e-visionario-9764484.html>.
(2) Citado em MASCARENHAS, João Mário (org.) – Grandella, o grande homem. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2001, pp. 284 e 285. A estação ferroviária da Azambuja faz parte do lanço da linha do Norte – inaugurada no ano de 1856, com a ligação Lisboa – Carregado -, entre Carregado e Virtudes, que foi aberto à exploração a 31 de julho de 1857 pelo Estado Português e que posteriormente passou para a Companhia Real dos Caminhos de Ferro. Em 1857, a estação da Azambuja contava com o serviço regular de bagagens e passageiros, nas 3 classes.
(3) MASCARENHAS, João Mário (org), Op. Cit., 287.