«Marca de propriedade de um livro, como escudo, iniciais ou
qualquer outro elemento ao mesmo tempo ornamental, que se estampa a seco ou com
ouro na capa da encadernação, dela fazendo parte integrante, à diferença do
ex-libris, que é colado.»
(Paulo Gaspar Ferreira, p. 154, 1997)
No seguimento do
artigo anterior (“Super-libros; parte 1”), o presente texto desenvolve a origem,
características e importância da marca de posse conhecida como “super-libros”,
contextualizando o seu aparecimento em termos histórico-culturais e económicos e
o seu progressivo declínio em transição para o congénere e sucedâneo
“ex-libris”. Observa-se, igualmente, a importância fulcral desempenhada pela
invenção da tipografia e consequente propagação do livro impresso. De facto, conforme
se constata, o grande incremento da produção de livros, aliado a uma nobreza
palaciana que passa a exibir a sua posição pelos cargos e erudição que adquire
(e já não apenas pelos feitos de armas), concorrerá para o surgimento de muitas
bibliotecas privadas.
«As coisas já estavam amadurecidas.
Uma Europa de novo desperta estava a exigir livros e havia necessidade premente
de um método de os reproduzir rapidamente e em abundância; os livros
xilogravados já em circulação revelavam que podiam fabricar-se em quantidade
por meio da imprensa; os carimbos de letras separadas usados pelos
encadernadores sugeriram o melhor método – o mais flexível, prático e económico
– de compor textos para a impressão. As artes e ofícios da época tinham pronto
para utilização ou adaptação os materiais, processos e aparelhos necessários
para porem em prática a técnica de imprimir.»
(Douglas C. McMurtrie, p. 157, 1997)
A vasta maioria
das obras literárias irá passar pelo prelo. Se, financeiramente, se tornam um
produto mais acessível, a sua aparência é menos luxuosa do que os ricos
manuscritos iluminados da Idade Média. Era, sem dúvida, essencial qualquer
forma de cobertura para a conservação de textos destinados à leitura. Daí que o
bibliófilo-colecionador procure, por vezes, compensar esta uniformidade do
corpo da obra, embelezando-a através do recurso a belas peles de encadernação,
elegantes motivos e ornatos e ricos ferros de dourar que tornam cada edição um exemplar
único e irrepetível. Conforme relata McMurtrie (designer gráfico e importante
historiador do livro e da arte de impressão): «Durante este período (séc. XVI),
o encadernador cosia muitas vezes o livro e metia-o numa capa de couro que era
depois decorada por outro artista especializado em gravação a ouro. Os melhores
douradores de couro (doreurs sur cuir)
parisienses eram muito mais do que meros artífices. Trabalhavam relativamente
com poucos e simples instrumentos, mas faziam com eles encadernações de notável
cunho artístico pessoal, comparável em beleza requintada às encadernações
alemãs de couro cinzelado.» (cfr. McMurtrie, p. 560, 1997)
Deste modo, o
orgulho e notoriedade do adquirente e possuidor ganham definitiva consagração e
tornam-se um legado inestimável para a geração vindoura, após a gravação (a
seco ou a ouro) de um magnífico e prestigiante “super-libros.” Deste modo, também
a arte da encadernação floresceu e ganhou amplo desenvolvimento em diversas
regiões, criando estilos característicos de decoração de capas. Felizmente,
para o estudo e conhecimento da história do livro, muitas encadernações chegaram
até nós bem preservadas e encontram-se assinadas pelos artífices que as
executaram.
«Certos exemplares de obras raras
chegam a ter uma verdadeira personalidade. São alguém, são conhecidos dos
bibliófilos, se não pessoalmente, pelo menos pela fama. Alguns têm uma
verdadeira genealogia, sabe-se de onde vieram, por que mãos passaram e onde se
encontram no momento. Os bibliófilos que o viram falam dele como se fosse uma
pessoa, elogiam-no ou lhe apontam os defeitos, comparam-no com outros. São,
geralmente, peças que pertenceram ao próprio autor ou fizeram parte da coleção
de algum personagem. Esses exemplares privilegiados, esses livros de sangue
azul, enobrecem uma biblioteca. A procedência de um livro é, portanto, muito
importante para o colecionador.»
(Borba de Moraes, p. 108, 2018)
Encadernação
com super-libros armas do Reino Unido
de
Portugal, Brasil e Algarves.
(Escudo
sobre esfera armilar)
(Coleção do autor)
O costume de revelar a
propriedade marcando as capas dos livros com emblemas ou armas pessoais parece
ter a sua origem mais remota na incorporação do desenho ou ilustração de
armoriais na iluminação dos antigos manuscritos medievais. A ênfase na
representação das armas pessoais de indivíduos foi estabelecida por altura do
século XIV e aumentou consideravelmente no século seguinte. Com o surgimento da
imprensa, o século XV passou por transformações que trouxeram como consequência
uma maior liberdade de acesso à informação e pensamento. Desde a sua invenção,
a imprensa alargou de forma considerável o público da cultura escrita.
Tornou-se possível que oficiais subalternos (sargentos, notários, etc.) e
figuras do baixo clero constituíssem eles próprios uma pequena biblioteca,
ainda que reunindo uma dezena de exemplares. Entre os anos de 1480 e 1530,
essas bibliotecas, multiplicaram-se em diversos países e regiões. Observou-se,
igualmente, um efetivo progresso cultural nos meios aristocráticos, com a
constituição de belas e preciosas bibliotecas. A invenção da imprensa e outros
desenvolvimentos tecnológicos permitiu aumentar a produção do número de livros
e disponibilizá-los a um preço mais acessível. Esta situação fomentou o início
e promoção da constituição de importantes bibliotecas particulares, principalmente
literárias e vernáculas, sendo que alguns proprietários tomaram o hábito de
colocar as suas armas e divisas, igualmente, nas encadernações dos seus livros.
«A incorporação das armas nacionais portuguesas nas portadas dos livros
impressos em Portugal, desde os alvores da tipografia até aos fins do século
XVI, é um facto absolutamente normal. No ponto de vista da Heráldica, dir-se-ia
que os impressores assumiam papel semelhante ao dos arautos e dos passavantes colocados sob a
autoridade do rei-de-armas.
Humildes oficiais mecânicos, sem fumaças de brasonagem, os primeiros tipógrafos
acolhiam-se ao mecenato da Casa Real ou das famílias abastadas, e eles próprios
usavam a sua arte para homenagearem os seus patrocinadores, imprimindo em lugar
de destaque os símbolos nacionais ou os brasões de famílias nobres. Sucedeu
isso também na generalidade dos países europeus, e mais ainda naqueles em que a
identidade nacional era mais viva.»
(Artur
Anselmo, p. 444, 2014)
Encadernação
com super-libros armas do Reino de Portugal.
(Armas
sobre manto de arminho)
(Coleção do
autor)
O século XVI é considerado por diversos autores como o século de ouro
da tipografia. No perfil das obras quinhentistas ganham dianteira as de
carácter religioso, um dos temas mais abordados e glosados nesta época, como o
caso de hagiografias, obras de devoção e liturgia, manuais de ascética e
relatos de missionação, mas também temas de carácter histórico como sejam as
crónicas dos reis, os textos legislativos, as obras de poesia, as gramáticas,
as ortografias, etc.
Os livros multiplicaram-se, tornaram-se menos imponentes, a reprodução
textual tornou-se mais fiel, conduzindo à criação das então chamadas
“livrarias” (sinónimo de “biblioteca”, entendido como coleção de livros), por
parte de particulares amadores e não mais apenas circunscrito às casas reais,
conventos e instituições de estudo e saber como o caso dos colégios e
universidades.
O desejo de colecionar determinados livros por circunstâncias
especiais ligadas à sua publicação, como a sua raridade, incentivou, também, o
comércio de livros; sendo que, neste período, surgem, igualmente, novas
técnicas e materiais de encadernação. Acontece que os livros nem sempre eram
encadernados pelo editor, após a impressão estar finalizada. Muitas vezes eram
expedidos em tonéis de uma cidade para outra, para serem encadernados ao gosto
do próprio encadernador. Algumas encadernações passam a ser feitas em
“ateliers” especializados, que trabalhavam por encomenda de mecenas,
bibliófilos e colecionadores. Os livros tornaram-se personalizados, passando-se
a exaltar o nome do proprietário, ou com um emblema ou divisa e motivos
heráldicos no centro do livro, geralmente em forma de emblema ou medalhão e
alusivos ao proprietário ou à entidade que os detinha.
Encadernação
com super-libros armas do Reino de Portugal.
(Armas reais
sobre panóplia de estandartes)
(Coleção do
autor)
«Nos casos simples, uma encadernação armoriada, uma
assinatura, um ex-libris, uma anotação feita por um livreiro ou leiloeiro,
indicando de quem o adquiriu e em que catálogo está descrito, servem para autenticar
a origem. Em outros casos o tipo da encadernação, igual ao que usava
sabidamente um colecionador, certas marcas manuscritas que serviam para
localizar livros, certas particularidades semelhantes às encontradas em outras
obras, cujo dono é conhecido, são elementos que servem para se identificar uma
peça como tendo pertencido a uma determinada coleção.»
(Borba de
Moraes, p. 108, 2018)
No caso paradigmático de Inglaterra (que, a par da França, no
continente, produziu ricas e belas encadernações armoriadas), ilustres
intelectuais e políticos do período isabelino (segunda metade do séc. XVI) que
foram colecionadores de livros – Robert Dudley, Conde de Leicester; Lord
Burghley; Thomas Wotton; Francis Bacon – bem como eclesiásticos que se
distinguiram neste período de fortes conflitos religiosos, não dispensavam o
seu cunho pessoal, nas respetivas encadernações. A presença de obras de armaria
(ciência heráldica) tornou-se, igualmente, indispensável em qualquer biblioteca
pública ou privada. A heráldica surgia como uma parte integrante e necessária
da cultura de qualquer indivíduo que pretendesse ser considerado como detentor
de uma cultura aceitável. O saber heráldico, vertido em manuais de heráldica,
tratados de armaria e armoriais, entrou por inteiro na sociedade. Enquanto
código visual e comunicacional, o cerne da heráldica repousa no conhecimento,
leitura e interpretação das armas.
«Ao longo dos séculos XVII e XVIII,
as encadernações comuns continuam a ser recobertas de vitela, sem outra
decoração nas capas que não seja uma cercadura de filetes dourados; para as
encadernações mais cuidadas, utiliza-se correntemente o marroquim; quando os
livros pertencem a um grande senhor ou a um colecionador, este muitas vezes
manda gravar as suas armas no centro da capa. Alguns bibliófilos, contudo, no
século XVII continuam a mandar executar encadernações decoradas com ferros
pequenos, sobrecarregadas de ouro; e, quando a biblioteca se desenvolve, no
século XVIII, a encadernação de luxo conhece, em França, um novo surto.»
(Lucien Febvre; Henri-Jean Martin, p.
150, 2000)
Reportando, ainda, ao caso inglês, durante os séculos XVII e XVIII o
uso de peles coloridas e de sofisticados adornos e motivos ornamentais nas
encadernações, veio a deixar pouco espaço para a aposição de grandes timbres
ornamentais; ainda que possamos encontrar alguns belos exemplares. Como
consequência, as armas heráldicas reduzem de tamanho e deixam de exibir a
exuberância da era Tudor. Com o advento da Restauração surge a tendência para
usar apenas um simples monograma ou cifra coroada, cercada por coroa de louros,
representando o mérito e a glória de quem a ostenta.
O Aparecimento do Ex-libris
É difícil determinar com precisão o aparecimento do ex-libris, embora a necessidade de marcar o livro com um sinal de pertença pareça ser tão antiga quanto o próprio. De qualquer modo, o emprego e o uso do ex-libris como hoje o conhecemos, parece datar do Renascimento, com a difusão do livro tipográfico. O final do século XVIII, porém, conforme referido, assistirá ao declínio da exibição heráldica e de alguns traços característicos da cultura medieval. O brasão de armas continuou a representar um símbolo de status, que não desaparece, mas a marca exterior nos livros (Super-libros; “ex-libris encadernado”, espécie de “ex-libris fixo”) é gradualmente substituída pela marca de posse dentro do livro (“ex-libris móvel”) – através do simples uso de uma vinheta aplicada, colada dentro do volume –, vindo a dar-se um progressivo declínio da imagem exterior armoriada.
Termo originário do latim, “ex-libris” significa “da biblioteca de”,
“fazendo parte dos livros de” e é uma marca de posse carregada no interior de
uma obra (autocolante colado, gravado ou impresso), no verso da capa ou na
guarda dos livros. Exibe, normalmente, o nome da pessoa ou da entidade a quem a
obra pertence, por vezes acompanhado por um lema, as suas armas ou um desenho
alegórico e, geralmente, legendas ou ditos sentenciosos. Contudo, desde a Idade
Média, os grandes nobres mandavam pintar o seu brasão de armas nos manuscritos
que encomendavam, surgindo as armas do proprietário iluminadas quer no início
do volume, quer inseridas nas iniciais, quer junto do colofão. O ex-libris sempre manteve, aliás, um caráter
heráldico, não raro ostentando emblemas, monogramas, divisas, quer de
indivíduos, famílias, quer de instituições, cidades ou corporações.
Para os bibliotecários, principalmente os responsáveis de património,
estas marcas de posse (a que também chamam “marcas de proveniência”) são de
extrema importância, pois permitem identificar o anterior e os sucessivos
titulares de uma obra, o doador ou patrocinador, estimar a importância daquela e
traçar o percurso percorrido no espaço geográfico e no tempo.
JMG
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