2021/09/02

A Arte no Livro - marcas de posse. Super-libros (Parte 2)

«Marca de propriedade de um livro, como escudo, iniciais ou qualquer outro elemento ao mesmo tempo ornamental, que se estampa a seco ou com ouro na capa da encadernação, dela fazendo parte integrante, à diferença do ex-libris, que é colado.»

(Paulo Gaspar Ferreira, p. 154, 1997)

 

No seguimento do artigo anterior (“Super-libros; parte 1”), o presente texto desenvolve a origem, características e importância da marca de posse conhecida como “super-libros”, contextualizando o seu aparecimento em termos histórico-culturais e económicos e o seu progressivo declínio em transição para o congénere e sucedâneo “ex-libris”. Observa-se, igualmente, a importância fulcral desempenhada pela invenção da tipografia e consequente propagação do livro impresso. De facto, conforme se constata, o grande incremento da produção de livros, aliado a uma nobreza palaciana que passa a exibir a sua posição pelos cargos e erudição que adquire (e já não apenas pelos feitos de armas), concorrerá para o surgimento de muitas bibliotecas privadas.

 

«As coisas já estavam amadurecidas. Uma Europa de novo desperta estava a exigir livros e havia necessidade premente de um método de os reproduzir rapidamente e em abundância; os livros xilogravados já em circulação revelavam que podiam fabricar-se em quantidade por meio da imprensa; os carimbos de letras separadas usados pelos encadernadores sugeriram o melhor método – o mais flexível, prático e económico – de compor textos para a impressão. As artes e ofícios da época tinham pronto para utilização ou adaptação os materiais, processos e aparelhos necessários para porem em prática a técnica de imprimir.»

(Douglas C. McMurtrie, p. 157, 1997)

 

A vasta maioria das obras literárias irá passar pelo prelo. Se, financeiramente, se tornam um produto mais acessível, a sua aparência é menos luxuosa do que os ricos manuscritos iluminados da Idade Média. Era, sem dúvida, essencial qualquer forma de cobertura para a conservação de textos destinados à leitura. Daí que o bibliófilo-colecionador procure, por vezes, compensar esta uniformidade do corpo da obra, embelezando-a através do recurso a belas peles de encadernação, elegantes motivos e ornatos e ricos ferros de dourar que tornam cada edição um exemplar único e irrepetível. Conforme relata McMurtrie (designer gráfico e importante historiador do livro e da arte de impressão): «Durante este período (séc. XVI), o encadernador cosia muitas vezes o livro e metia-o numa capa de couro que era depois decorada por outro artista especializado em gravação a ouro. Os melhores douradores de couro (doreurs sur cuir) parisienses eram muito mais do que meros artífices. Trabalhavam relativamente com poucos e simples instrumentos, mas faziam com eles encadernações de notável cunho artístico pessoal, comparável em beleza requintada às encadernações alemãs de couro cinzelado.» (cfr. McMurtrie, p. 560, 1997)

 

Deste modo, o orgulho e notoriedade do adquirente e possuidor ganham definitiva consagração e tornam-se um legado inestimável para a geração vindoura, após a gravação (a seco ou a ouro) de um magnífico e prestigiante “super-libros.” Deste modo, também a arte da encadernação floresceu e ganhou amplo desenvolvimento em diversas regiões, criando estilos característicos de decoração de capas. Felizmente, para o estudo e conhecimento da história do livro, muitas encadernações chegaram até nós bem preservadas e encontram-se assinadas pelos artífices que as executaram.

 

 

«Certos exemplares de obras raras chegam a ter uma verdadeira personalidade. São alguém, são conhecidos dos bibliófilos, se não pessoalmente, pelo menos pela fama. Alguns têm uma verdadeira genealogia, sabe-se de onde vieram, por que mãos passaram e onde se encontram no momento. Os bibliófilos que o viram falam dele como se fosse uma pessoa, elogiam-no ou lhe apontam os defeitos, comparam-no com outros. São, geralmente, peças que pertenceram ao próprio autor ou fizeram parte da coleção de algum personagem. Esses exemplares privilegiados, esses livros de sangue azul, enobrecem uma biblioteca. A procedência de um livro é, portanto, muito importante para o colecionador.»

(Borba de Moraes, p. 108, 2018)

 

Encadernação com super-libros armas do Reino Unido

de Portugal, Brasil e Algarves.

(Escudo sobre esfera armilar)

(Coleção do autor)

O costume de revelar a propriedade marcando as capas dos livros com emblemas ou armas pessoais parece ter a sua origem mais remota na incorporação do desenho ou ilustração de armoriais na iluminação dos antigos manuscritos medievais. A ênfase na representação das armas pessoais de indivíduos foi estabelecida por altura do século XIV e aumentou consideravelmente no século seguinte. Com o surgimento da imprensa, o século XV passou por transformações que trouxeram como consequência uma maior liberdade de acesso à informação e pensamento. Desde a sua invenção, a imprensa alargou de forma considerável o público da cultura escrita. Tornou-se possível que oficiais subalternos (sargentos, notários, etc.) e figuras do baixo clero constituíssem eles próprios uma pequena biblioteca, ainda que reunindo uma dezena de exemplares. Entre os anos de 1480 e 1530, essas bibliotecas, multiplicaram-se em diversos países e regiões. Observou-se, igualmente, um efetivo progresso cultural nos meios aristocráticos, com a constituição de belas e preciosas bibliotecas. A invenção da imprensa e outros desenvolvimentos tecnológicos permitiu aumentar a produção do número de livros e disponibilizá-los a um preço mais acessível. Esta situação fomentou o início e promoção da constituição de importantes bibliotecas particulares, principalmente literárias e vernáculas, sendo que alguns proprietários tomaram o hábito de colocar as suas armas e divisas, igualmente, nas encadernações dos seus livros.


«A incorporação das armas nacionais portuguesas nas portadas dos livros impressos em Portugal, desde os alvores da tipografia até aos fins do século XVI, é um facto absolutamente normal. No ponto de vista da Heráldica, dir-se-ia que os impressores assumiam papel semelhante ao dos arautos e dos passavantes colocados sob a autoridade do rei-de-armas. Humildes oficiais mecânicos, sem fumaças de brasonagem, os primeiros tipógrafos acolhiam-se ao mecenato da Casa Real ou das famílias abastadas, e eles próprios usavam a sua arte para homenagearem os seus patrocinadores, imprimindo em lugar de destaque os símbolos nacionais ou os brasões de famílias nobres. Sucedeu isso também na generalidade dos países europeus, e mais ainda naqueles em que a identidade nacional era mais viva.»

(Artur Anselmo, p. 444, 2014)

 

Encadernação com super-libros armas do Reino de Portugal.

(Armas sobre manto de arminho)

(Coleção do autor)

 

O século XVI é considerado por diversos autores como o século de ouro da tipografia. No perfil das obras quinhentistas ganham dianteira as de carácter religioso, um dos temas mais abordados e glosados nesta época, como o caso de hagiografias, obras de devoção e liturgia, manuais de ascética e relatos de missionação, mas também temas de carácter histórico como sejam as crónicas dos reis, os textos legislativos, as obras de poesia, as gramáticas, as ortografias, etc.

Os livros multiplicaram-se, tornaram-se menos imponentes, a reprodução textual tornou-se mais fiel, conduzindo à criação das então chamadas “livrarias” (sinónimo de “biblioteca”, entendido como coleção de livros), por parte de particulares amadores e não mais apenas circunscrito às casas reais, conventos e instituições de estudo e saber como o caso dos colégios e universidades.

O desejo de colecionar determinados livros por circunstâncias especiais ligadas à sua publicação, como a sua raridade, incentivou, também, o comércio de livros; sendo que, neste período, surgem, igualmente, novas técnicas e materiais de encadernação. Acontece que os livros nem sempre eram encadernados pelo editor, após a impressão estar finalizada. Muitas vezes eram expedidos em tonéis de uma cidade para outra, para serem encadernados ao gosto do próprio encadernador. Algumas encadernações passam a ser feitas em “ateliers” especializados, que trabalhavam por encomenda de mecenas, bibliófilos e colecionadores. Os livros tornaram-se personalizados, passando-se a exaltar o nome do proprietário, ou com um emblema ou divisa e motivos heráldicos no centro do livro, geralmente em forma de emblema ou medalhão e alusivos ao proprietário ou à entidade que os detinha.

 

Encadernação com super-libros armas do Reino de Portugal.

(Armas reais sobre panóplia de estandartes)

(Coleção do autor)

 

«Nos casos simples, uma encadernação armoriada, uma assinatura, um ex-libris, uma anotação feita por um livreiro ou leiloeiro, indicando de quem o adquiriu e em que catálogo está descrito, servem para autenticar a origem. Em outros casos o tipo da encadernação, igual ao que usava sabidamente um colecionador, certas marcas manuscritas que serviam para localizar livros, certas particularidades semelhantes às encontradas em outras obras, cujo dono é conhecido, são elementos que servem para se identificar uma peça como tendo pertencido a uma determinada coleção.»

(Borba de Moraes, p. 108, 2018)

 

No caso paradigmático de Inglaterra (que, a par da França, no continente, produziu ricas e belas encadernações armoriadas), ilustres intelectuais e políticos do período isabelino (segunda metade do séc. XVI) que foram colecionadores de livros – Robert Dudley, Conde de Leicester; Lord Burghley; Thomas Wotton; Francis Bacon – bem como eclesiásticos que se distinguiram neste período de fortes conflitos religiosos, não dispensavam o seu cunho pessoal, nas respetivas encadernações. A presença de obras de armaria (ciência heráldica) tornou-se, igualmente, indispensável em qualquer biblioteca pública ou privada. A heráldica surgia como uma parte integrante e necessária da cultura de qualquer indivíduo que pretendesse ser considerado como detentor de uma cultura aceitável. O saber heráldico, vertido em manuais de heráldica, tratados de armaria e armoriais, entrou por inteiro na sociedade. Enquanto código visual e comunicacional, o cerne da heráldica repousa no conhecimento, leitura e interpretação das armas.

 

«Ao longo dos séculos XVII e XVIII, as encadernações comuns continuam a ser recobertas de vitela, sem outra decoração nas capas que não seja uma cercadura de filetes dourados; para as encadernações mais cuidadas, utiliza-se correntemente o marroquim; quando os livros pertencem a um grande senhor ou a um colecionador, este muitas vezes manda gravar as suas armas no centro da capa. Alguns bibliófilos, contudo, no século XVII continuam a mandar executar encadernações decoradas com ferros pequenos, sobrecarregadas de ouro; e, quando a biblioteca se desenvolve, no século XVIII, a encadernação de luxo conhece, em França, um novo surto.»

(Lucien Febvre; Henri-Jean Martin, p. 150, 2000)

 

Reportando, ainda, ao caso inglês, durante os séculos XVII e XVIII o uso de peles coloridas e de sofisticados adornos e motivos ornamentais nas encadernações, veio a deixar pouco espaço para a aposição de grandes timbres ornamentais; ainda que possamos encontrar alguns belos exemplares. Como consequência, as armas heráldicas reduzem de tamanho e deixam de exibir a exuberância da era Tudor. Com o advento da Restauração surge a tendência para usar apenas um simples monograma ou cifra coroada, cercada por coroa de louros, representando o mérito e a glória de quem a ostenta.

 

O Aparecimento do Ex-libris

 

É difícil determinar com precisão o aparecimento do ex-libris, embora a necessidade de marcar o livro com um sinal de pertença pareça ser tão antiga quanto o próprio. De qualquer modo, o emprego e o uso do ex-libris como hoje o conhecemos, parece datar do Renascimento, com a difusão do livro tipográfico. O final do século XVIII, porém, conforme referido, assistirá ao declínio da exibição heráldica e de alguns traços característicos da cultura medieval. O brasão de armas continuou a representar um símbolo de status, que não desaparece, mas a marca exterior nos livros (Super-libros; “ex-libris encadernado”, espécie de “ex-libris fixo”) é gradualmente substituída pela marca de posse dentro do livro (“ex-libris móvel”) – através do simples uso de uma vinheta aplicada, colada dentro do volume –, vindo a dar-se um progressivo declínio da imagem exterior armoriada.

Termo originário do latim, “ex-libris” significa “da biblioteca de”, “fazendo parte dos livros de” e é uma marca de posse carregada no interior de uma obra (autocolante colado, gravado ou impresso), no verso da capa ou na guarda dos livros. Exibe, normalmente, o nome da pessoa ou da entidade a quem a obra pertence, por vezes acompanhado por um lema, as suas armas ou um desenho alegórico e, geralmente, legendas ou ditos sentenciosos. Contudo, desde a Idade Média, os grandes nobres mandavam pintar o seu brasão de armas nos manuscritos que encomendavam, surgindo as armas do proprietário iluminadas quer no início do volume, quer inseridas nas iniciais, quer junto do colofão. O ex-libris sempre manteve, aliás, um caráter heráldico, não raro ostentando emblemas, monogramas, divisas, quer de indivíduos, famílias, quer de instituições, cidades ou corporações.

Para os bibliotecários, principalmente os responsáveis de património, estas marcas de posse (a que também chamam “marcas de proveniência”) são de extrema importância, pois permitem identificar o anterior e os sucessivos titulares de uma obra, o doador ou patrocinador, estimar a importância daquela e traçar o percurso percorrido no espaço geográfico e no tempo.

 

JMG

 

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FEBVRE, Lucien e MARTIN, Henri-Jean (2000). O Aparecimento do Livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

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