«Ao longo da história, a humanidade tem preservado seu legado cultural, científico e literário de diversas maneiras, sendo uma das mais significativas através de bibliotecas. Estes centros de conhecimento não são apenas coleções de escritos e artefactos; eles são cápsulas do tempo, guardiãs do pensamento humano e da evolução social, política e espiritual de civilizações inteiras. No vasto panorama das bibliotecas antigas, poucas conseguem se equiparar tanto em riqueza quanto em relevância histórica à Biblioteca de Assurbanipal em Nínive. Este tesouro literário do mundo antigo serve como um lembrete poderoso da capacidade humana de criar, preservar e disseminar conhecimento através das eras.»
(Cadu Melchior, https://portalmundodigital.com.br, 2023)
Fazendo uma “história das
bibliotecas” parece haver consenso em considerar a Biblioteca de Nínive, na
antiga Mesopotâmia (região que, nos dias de hoje, abarca o Iraque, Irão e
Jordânia, no Médio Oriente), como a primeira da história. Também ficou
conhecida como Biblioteca de Assurbanípal, pois foi este monarca, rei da
Assíria, quem, no ano de 668 a.C., teve a ideia de a mandar erigir na cidade de
Nínive, situada na margem ocidental do rio Tigre, capital do império assírio. Esta
antiga metrópole havia-se tornado a maior cidade do mundo antigo,
apresentando-se com toda a magnificência, riqueza e pujança, que caracteriza um
aglomerado com esta importância. As ruínas, que outrora dela faziam parte,
estendem-se hoje por uma vasta área que cobre os subúrbios da cidade de Mossul
(terceira maior cidade do atual Iraque). Nínive representou, também, outrora,
uma junção importante para as rotas comerciais que cruzavam o Tigre. Ocupando
uma posição estratégica entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Índico, unindo o
Oriente e o Ocidente, usufruía da vantagem de receber a riqueza que provinha de
várias fontes.
2. Berço do livro, das bibliotecas e registo da memória
«No século VII a.C. a Assíria tinha deusas da biblioteca, facto um tanto
ou quanto ocluído pela famosa biblioteca de Assurbanípal, um projeto de poder
para aquele rei assírio, sendo o seu conteúdo maioritariamente constituído por
inscrições que o enalteciam.»
(Martin Latham, p. 105, 2023)
A Biblioteca de Nínive, conforme referido, passou também à história
como “de Assurbanípal”, pois foi ele o ideólogo por detrás da sua construção,
sendo esta erigida no perímetro do seu palácio. O acervo da biblioteca era
composto por uma coleção de cerca de 25 a 30 000 placas de argila,
contendo textos em escrita cuneiforme e alguns mesmo em duas línguas (sumério e
arcádio). As placas, ou tabuinhas, foram o antepassado mais próximo dos livros.
Propagaram-se por todo o território da antiga Mesopotâmia e, em algumas
regiões, continuaram a usar-se até ao início da era cristã. De fabrico
artesanal e rudimentar, endureciam-se como os adobes, secando ao sol. Molhando
a superfície, tornava-se possível a sua reutilização. De tamanho variável, mas
extremamente frágeis, eram guardadas, ao abrigo da humidade, em estantes de
madeira e, também, em cestas de vime e jarras. Os assuntos narrados nestas
placas eram os mais diversos, porém, a maior parte incidindo sobre as grandes
preocupações e temas de reflexão da época como, por exemplo, textos sobre
geografia, matemática, astrologia, medicina, religião e leis. Outros,
debruçavam-se sobre temas, talvez não tão eruditos, mas de não menos
importância para a cultura da época, como exorcismo, manuais de presságio e de
profecias, fórmulas de encantamento, relatos de aventuras, hinos sagrados e
diversas peças literárias escritas em diferentes dialetos.
«A biblioteca do orgulhoso rei
Assurbanípal, o precedente mais próximo da Grande Biblioteca de Alexandria, não
possuiu a sua universalidade. Era um conjunto de documentos e textos úteis para
as cerimónias e rituais públicos. Até as obras literárias tinham o seu lugar
ali por motivos práticos, porque o rei precisava de conhecer os mitos
fundacionais do seu povo.»
Dentro deste acervo encontra-se a famosa epopeia de Gilgamesh (o rei
semilendário de Uruque), um antigo poema épico da Mesopotâmia e uma das
primeiras obras conhecidas da literatura mundial. Acredita-se que na sua origem
estejam diversas lendas e poemas sumérios sobre o mitológico deus-herói
Gilgamesh, tendo sido reunidos e compilados no século VII a.C., pelo próprio
rei Assurbanípal.
Nínive, próspera e estrategicamente localizada, era
naturalmente cobiçada. Em 612 a.C., a cidade foi sitiada por uma coligação de
babilónios, sírios e medos. Durante os tumultos e incêndios que se seguiram, o
fogo atingiu o palácio e, consequentemente, a biblioteca que se localizava no
seu perímetro. Grande parte dos documentos que albergava, dada a sua frágil
natureza (argila e cera, a maioria), ficaram irremediavelmente perdidos.
«Sem exceção, todas as
bibliotecas do Próximo-Oriente deixaram de existir e caíram no esquecimento. Os
escritos daqueles grandes impérios permaneceram sepultados nas areias dos
desertos ao pé das suas cidades destruídas, e os restos descobertos da sua
escrita eram indecifráveis. O esquecimento foi tão completo que, quando os
viajantes encontraram inscrições cuneiformes nas ruínas das cidades aqueménidas
muitos pensaram que eram simples decorações nas jambas das janelas e portas.
Depois de séculos de silêncio, foi a paixão dos investigadores que desenterrou
os seus vestígios e conseguiu decifrar as línguas esquecidas das suas
tabuinhas.»
(Irene Vallejo, pág. 70)
A coleção de
Assurbanípal foi a maior, mais ampla e mais importante biblioteca já reunida em
mais de 3500 anos. Até ao surgimento da Biblioteca de Alexandria, era a
biblioteca mais significativa da antiguidade. Com a morte de Assurbanípal
e o assalto a Nínive, a biblioteca sucumbiu. O tempo exerceu a sua ação e tanto
a biblioteca como o seu legado, foram sendo esquecidos. Somente no início do
século XIX, em 1842, uma equipa de arqueólogos ingleses descobriu os destroços
da antiga cidade e desenterrou milhares de tabuletas e fragmentos que haviam
sobrevivido soterrados centenas de anos, até voltarem a ver a luz do dia.
Contudo, por mais paradoxal que possa parecer, enquanto que livros ou quaisquer
outros documentos de papel, ou pergaminho, teriam inevitavelmente sido destruídos,
as tabuinhas de argila tornaram-se, em boa parte, mais duras, tornando-as os
documentos mais bem preservados da longa história da Mesopotâmia. Assim se deve
a Assurbanípal, líder político e temível guerreiro, mas também um rei letrado e
patrono das artes, da literatura e da erudição, termos hoje uma série de
documentos – dos mais variados saberes, disciplinas e conteúdos – que nos
permite conhecer e restituir à vida, o vasto e rico contexto da sociedade da
antiga Mesopotâmia.
JMG
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE
LEITURA:
(BIBLIOGRAFIA, WEBGRAFIA e
ILUSTRAÇÕES)
BÁEZ, Fernando (2004). Nueva historia universal de la destrucción
de los libros: de las tablillas sumérias a la era digital. Barcelona.
Ediciones Destino.
BARBIER, Frédéric (2018). De
Alexandria às bibliotecas virtuais. São Paulo: EDUSP.
BATTLES, Matthew (2003). A
conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil.
CASSON, Lionel (2001). Libraries
in the ancient world. New Haven and London: Yale University Press.
LATHAM, Martin (2023). Crónicas
de um livreiro. Lisboa. Coimbra: Edições 70.
MENANT, Joachim M. (2012). La bibliotheque du palais de Ninive: decouvertes assyriennes (Éd.
1880). Paris: Hachette BNF.
MURRAY, Stuart A.P. (2009). The library: an illustrated history. New York, Chicago: ALA
Editions.
NATIONAL GEOGRAPHIC EN ESPAÑOL (2022). FISCHER, Andrea. Así fue Nínive, la capital más poderosa del
Imperio Asirio que destruyó el Estado Islámico. [em linha]. [Consult.
02.05.2024]. Disponível: https://www.ngenespanol.com/historia/ninive-la-primera-capital-del-imperio-asirio/.
OIKONOMOPOULOU, Katerina; WOOLF, Greg (2013). Ancient libraries. St. Andrews:
Cambridge University Press.
PORTAL MUNDO DIGITAL (2023). MELCHIOR, Cadu. Saiba sobre a biblioteca de Assurbanipal em
Ninive. [em linha]. [Consult. 23.04.2024]. Disponível: https://portalmundodigital.com.br/biblioteca-de-assurbanipal-em-ninive/
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UNIVERSIDAD DE GRANADA (2024). Biblioteca armonica: musica, libros y pintura – la biblioteca de Ninive.
[em linha]. [Consult. 30.04.2024]. Disponível: https://wpd.ugr.es/~agamizv/?page_id=421
VALLEJO, Irene (2020). O
infinito num junco. Lisboa: Bertrand Editora.
WIKIPÉDIA (2020). Biblioteca
de Nínive. [em linha]. [Consult. 12.04.2023]. Disponível:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bibliotheca_Alexandrina
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