2024/05/30

As Bibliotecas e a História - A Biblioteca de Nínive ou "De Assurbanípal"

 

«Ao longo da história, a humanidade tem preservado seu legado cultural, científico e literário de diversas maneiras, sendo uma das mais significativas através de bibliotecas. Estes centros de conhecimento não são apenas coleções de escritos e artefactos; eles são cápsulas do tempo, guardiãs do pensamento humano e da evolução social, política e espiritual de civilizações inteiras. No vasto panorama das bibliotecas antigas, poucas conseguem se equiparar tanto em riqueza quanto em relevância histórica à Biblioteca de Assurbanipal em Nínive. Este tesouro literário do mundo antigo serve como um lembrete poderoso da capacidade humana de criar, preservar e disseminar conhecimento através das eras.»

(Cadu Melchior, https://portalmundodigital.com.br, 2023)

 

Imagem da Biblioteca de Nínive na Antiguidade.
Fonte: https://wpd.ugr.es/

 

1. Um importante legado para a História

Fazendo uma “história das bibliotecas” parece haver consenso em considerar a Biblioteca de Nínive, na antiga Mesopotâmia (região que, nos dias de hoje, abarca o Iraque, Irão e Jordânia, no Médio Oriente), como a primeira da história. Também ficou conhecida como Biblioteca de Assurbanípal, pois foi este monarca, rei da Assíria, quem, no ano de 668 a.C., teve a ideia de a mandar erigir na cidade de Nínive, situada na margem ocidental do rio Tigre, capital do império assírio. Esta antiga metrópole havia-se tornado a maior cidade do mundo antigo, apresentando-se com toda a magnificência, riqueza e pujança, que caracteriza um aglomerado com esta importância. As ruínas, que outrora dela faziam parte, estendem-se hoje por uma vasta área que cobre os subúrbios da cidade de Mossul (terceira maior cidade do atual Iraque). Nínive representou, também, outrora, uma junção importante para as rotas comerciais que cruzavam o Tigre. Ocupando uma posição estratégica entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Índico, unindo o Oriente e o Ocidente, usufruía da vantagem de receber a riqueza que provinha de várias fontes.


2. Berço do livro, das bibliotecas e registo da memória

 

«No século VII a.C. a Assíria tinha deusas da biblioteca, facto um tanto ou quanto ocluído pela famosa biblioteca de Assurbanípal, um projeto de poder para aquele rei assírio, sendo o seu conteúdo maioritariamente constituído por inscrições que o enalteciam.»

(Martin Latham, p. 105, 2023)

 

A Biblioteca de Nínive, conforme referido, passou também à história como “de Assurbanípal”, pois foi ele o ideólogo por detrás da sua construção, sendo esta erigida no perímetro do seu palácio. O acervo da biblioteca era composto por uma coleção de cerca de 25 a 30 000 placas de argila, contendo textos em escrita cuneiforme e alguns mesmo em duas línguas (sumério e arcádio). As placas, ou tabuinhas, foram o antepassado mais próximo dos livros. Propagaram-se por todo o território da antiga Mesopotâmia e, em algumas regiões, continuaram a usar-se até ao início da era cristã. De fabrico artesanal e rudimentar, endureciam-se como os adobes, secando ao sol. Molhando a superfície, tornava-se possível a sua reutilização. De tamanho variável, mas extremamente frágeis, eram guardadas, ao abrigo da humidade, em estantes de madeira e, também, em cestas de vime e jarras. Os assuntos narrados nestas placas eram os mais diversos, porém, a maior parte incidindo sobre as grandes preocupações e temas de reflexão da época como, por exemplo, textos sobre geografia, matemática, astrologia, medicina, religião e leis. Outros, debruçavam-se sobre temas, talvez não tão eruditos, mas de não menos importância para a cultura da época, como exorcismo, manuais de presságio e de profecias, fórmulas de encantamento, relatos de aventuras, hinos sagrados e diversas peças literárias escritas em diferentes dialetos.

 

«A biblioteca do orgulhoso rei Assurbanípal, o precedente mais próximo da Grande Biblioteca de Alexandria, não possuiu a sua universalidade. Era um conjunto de documentos e textos úteis para as cerimónias e rituais públicos. Até as obras literárias tinham o seu lugar ali por motivos práticos, porque o rei precisava de conhecer os mitos fundacionais do seu povo.»

 (Irene Vallejo, pág. 69)

 

Dentro deste acervo encontra-se a famosa epopeia de Gilgamesh (o rei semilendário de Uruque), um antigo poema épico da Mesopotâmia e uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial. Acredita-se que na sua origem estejam diversas lendas e poemas sumérios sobre o mitológico deus-herói Gilgamesh, tendo sido reunidos e compilados no século VII a.C., pelo próprio rei Assurbanípal.


Imagem de Assurbanípal liderando o seu exército.
Fonte: https://historiaeweb.com

 

Nínive, próspera e estrategicamente localizada, era naturalmente cobiçada. Em 612 a.C., a cidade foi sitiada por uma coligação de babilónios, sírios e medos. Durante os tumultos e incêndios que se seguiram, o fogo atingiu o palácio e, consequentemente, a biblioteca que se localizava no seu perímetro. Grande parte dos documentos que albergava, dada a sua frágil natureza (argila e cera, a maioria), ficaram irremediavelmente perdidos.

 

«Sem exceção, todas as bibliotecas do Próximo-Oriente deixaram de existir e caíram no esquecimento. Os escritos daqueles grandes impérios permaneceram sepultados nas areias dos desertos ao pé das suas cidades destruídas, e os restos descobertos da sua escrita eram indecifráveis. O esquecimento foi tão completo que, quando os viajantes encontraram inscrições cuneiformes nas ruínas das cidades aqueménidas muitos pensaram que eram simples decorações nas jambas das janelas e portas. Depois de séculos de silêncio, foi a paixão dos investigadores que desenterrou os seus vestígios e conseguiu decifrar as línguas esquecidas das suas tabuinhas.»

 

(Irene Vallejo, pág. 70)

 

 

A coleção de Assurbanípal foi a maior, mais ampla e mais importante biblioteca já reunida em mais de 3500 anos. Até ao surgimento da Biblioteca de Alexandria, era a biblioteca mais significativa da antiguidade. Com a morte de Assurbanípal e o assalto a Nínive, a biblioteca sucumbiu. O tempo exerceu a sua ação e tanto a biblioteca como o seu legado, foram sendo esquecidos. Somente no início do século XIX, em 1842, uma equipa de arqueólogos ingleses descobriu os destroços da antiga cidade e desenterrou milhares de tabuletas e fragmentos que haviam sobrevivido soterrados centenas de anos, até voltarem a ver a luz do dia. Contudo, por mais paradoxal que possa parecer, enquanto que livros ou quaisquer outros documentos de papel, ou pergaminho, teriam inevitavelmente sido destruídos, as tabuinhas de argila tornaram-se, em boa parte, mais duras, tornando-as os documentos mais bem preservados da longa história da Mesopotâmia. Assim se deve a Assurbanípal, líder político e temível guerreiro, mas também um rei letrado e patrono das artes, da literatura e da erudição, termos hoje uma série de documentos – dos mais variados saberes, disciplinas e conteúdos – que nos permite conhecer e restituir à vida, o vasto e rico contexto da sociedade da antiga Mesopotâmia.


JMG


REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:

(BIBLIOGRAFIA, WEBGRAFIA e ILUSTRAÇÕES)

BÁEZ, Fernando (2004). Nueva historia universal de la destrucción de los libros: de las tablillas sumérias a la era digital. Barcelona. Ediciones Destino.

BARBIER, Frédéric (2018). De Alexandria às bibliotecas virtuais. São Paulo: EDUSP.

BATTLES, Matthew (2003). A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil.

CASSON, Lionel (2001). Libraries in the ancient world. New Haven and London: Yale University Press.

LATHAM, Martin (2023). Crónicas de um livreiro. Lisboa. Coimbra: Edições 70.

MENANT, Joachim M. (2012). La bibliotheque du palais de Ninive: decouvertes assyriennes (Éd. 1880). Paris: Hachette BNF.

MURRAY, Stuart A.P. (2009). The library: an illustrated history. New York, Chicago: ALA Editions.

NATIONAL GEOGRAPHIC EN ESPAÑOL (2022). FISCHER, Andrea. Así fue Nínive, la capital más poderosa del Imperio Asirio que destruyó el Estado Islámico. [em linha]. [Consult. 02.05.2024]. Disponível: https://www.ngenespanol.com/historia/ninive-la-primera-capital-del-imperio-asirio/.

OIKONOMOPOULOU, Katerina; WOOLF, Greg (2013). Ancient libraries. St. Andrews: Cambridge University Press.

PORTAL MUNDO DIGITAL (2023). MELCHIOR, Cadu. Saiba sobre a biblioteca de Assurbanipal em Ninive. [em linha]. [Consult. 23.04.2024]. Disponível: https://portalmundodigital.com.br/biblioteca-de-assurbanipal-em-ninive/

THOMPSON, James Westfall (1940). Ancient libraries. Berkeley: University of California Press.

UNIVERSIDAD DE GRANADA (2024). Biblioteca armonica: musica, libros y pintura – la biblioteca de Ninive. [em linha]. [Consult. 30.04.2024]. Disponível: https://wpd.ugr.es/~agamizv/?page_id=421

VALLEJO, Irene (2020). O infinito num junco. Lisboa: Bertrand Editora.

WIKIPÉDIA (2020). Biblioteca de Nínive. [em linha]. [Consult. 12.04.2023]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bibliotheca_Alexandrina

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