Bocage (1765 - 1805)
As origens do Liceu de Setúbal remontam a meados do século
XIX, a partir de 1921 assume Barbosa du Bocage como patrono até à atualidade.
Manuel Maria Barbosa du Bocage nasceu
em Setúbal a 15 de setembro de 1765, faleceu em Lisboa a 21 de dezembro de
1805. Era filho do bacharel José Luís Soares de Barbosa, antigo juiz de fora,
ouvidor, e depois advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage. A
ascendência da sua família é a mesma do Dr. José Vicente Barbosa du Bocage. Sua
mãe era segunda sobrinha da célebre poetisa francesa, madame Marie Anne Le Page
du Bocage, tradutora do Paraíso de Milton, imitadora da Morte de Abel,
de Gessner, e autora da tragédia As Amazonas e do poema épico em dez
cantos A Columbiada, que lhe mereceu a coroa de louros de Voltaire e o
primeiro premio da academia de Rouen.
Passados os anos da puerícia nos primeiros estudos, com um mestre que o
maltratava, entrou na aula régia de gramática do padre espanhol D. João de
Medina, e ali aprendeu a língua latina. Era então moda a educação humanista, ainda pouco acompanhada pelo estudo das ciências
naturais. No país havia, contudo, dois homens que a par duma cultivavam a
outra: José Anastácio da Cunha e José Monteiro da Rocha, ambos lentes da
Universidade de Coimbra, novamente fundada pelo marquês de Pombal, e ambos
poetas de elevado merecimento. O primeiro, militar infeliz, vítima do seu génio
brusco e das ideias da época; o segundo, jesuíta insigne, reitor daquele
estabelecimento de instrução, e preceptor dos príncipes. Bocage, que sentia
admiração por tudo que é grande e belo, extasiava-se ao ler as poesias daqueles
sábios, e até aos estranhos as inculcava por muito superiores às suas;
procedimento raro, que define o seu excelente carater.
No ano de 1779 assentou praça de cadete no Regimento de Infantaria n.º 7
de Setúbal, vindo estudar para Lisboa aos 14 anos de idade. O desprezo
constante pelos actos do ex-ministro de D. José, levara os conselheiros da
rainha D. Maria I a criar em Lisboa, em 5 de agosto de 1779, uma instituição, a
que chamaram Academia real de marinha, dando aos que a frequentavam as
mesmas regalias que tinham os estudantes da Universidade. Foi nesse instituto
que Bocage recebeu a sua educação científica, indo talvez mais tarde
aperfeiçoá-la na Academia dos guardas marinhas, criada em 14 de agosto
de 1782. Sete anos passou Bocage em Lisboa a estudar ciência e a compor versos.
Carpindo acerbas mágoas, e sofrendo cruciantes dores, que o seu viver demasiado
livre lhe acarretava continuamente, aquela musa brilhantíssima expandia-se em
lágrimas, em suspiros e em queixumes amorosos, ora de ternura inexcedível, ora
de aspereza selvática. Assim descansava o vate enamorado, para quem as paixões
levianas eram tudo.
As damas que julgava requestar, constituíam o seu único pensamento. Por
elas fazia sacrifícios, que somente a sua alma de poeta podia compreender, e
enlevado nas mais doces ilusões quase nunca a realidade aparecia ao seu
brilhante espírito. Confiando nos seus dotes de claro entendimento, estava tão
certo de agradar às belas, que notava com espanto a resistência dalguma, que
porventura se esquivava aos seus galanteios. Tomava como correspondência
amorosa o aplauso unânime que obtinha nas salas ao recitar os seus versos. E
assim viveu sempre em toda esta primeira fase das suas aventuras, a amar e a
padecer. O nome de Gertruria que muitas vezes invocava apaixonado,
tornava-se o seu pensar constante; anagrama imperfeito de Gertrudes, ficção
poética ou realidade histórica; foi este nome que por muito tempo e mais
profundamente o inspirou.
Era estreitíssimo; asfixiante, o ambiente que então se respirava na
capital. Por um lado os medos da propagação das doutrinas filosóficas traziam
empenhados o tribunal da Inquisição, a polícia e o intendente Pina Manique, seu
chefe, na indagação minuciosa dos factos, ainda os de menor alcance, que
pudesse cada indivíduo praticar com intuitos liberais; e já para escapar à
perseguição havia emigrado para França em 1778 o padre Francisco Manuel do
Nascimento, Filinto Elísio, acusado pela espionagem ao Santo Ofício. Por outro
lado não estava ainda extinta a luta dos ódios contra o marquês de Pombal, a
quem as famílias dos nobres, por ele castigados, acusavam violentamente,
imputando-lhe acções desonrosas, delitos infamantes, e tentando reabilitar-se
como inocentes no atentado contra el-rei D. José. Época de incertezas, de
dúvidas, de receios e de perseguições.
Como poderia florescer no mais elevado grau a literatura portuguesa,
embora tivesse por cultor um génio como Barbosa du Bocage? O gosto de então, a
moda predominante, eram as canções brasileiras, cantadas à guitarra ou à
viola, desde as reuniões de família, até ás orgias dos botequins. Todos os
poetas davam à porfia letras para estas árias, e Manuel Maria, como Bocage era
ordinariamente conhecido, não foi dos menos pródigos. Demais, o poeta, que
sempre sonhava parecer-se o seu destino com o de Camões, que só invejava a
imorredoura glória do grande épico, comparava a sua mocidade livre com a que
ele tivera, e pensava porventura que também este na corte compunha e recitava
versos, requestava donzelas, e cantava a Natércia. Camões tinha ido ao Oriente,
Bocage foi também.
Em 1786, antes de terminar um mês depois de alcançado o despacho de
guarda-marinha, por decreto de 4 de fevereiro daquele ano, partia o nosso poeta
a visitar as terras que inspiraram o imortal cantor dos Lusíadas. A nau
de viagem, Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena, comandada
por José Rodrigues Magalhães, transportava a seu bordo o vate enamorado, que na
força da vida e no vigor do talento ia procurar novos horizontes para melhor
desenvolver as suas formosíssimas concepções poéticas. A nau de viagem arribou
ao Rio de Janeiro, por causa de tempestade que se levantou. Bocage ali se
demorou, sendo muito bem recebido pelo vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos
e Sousa, e pela melhor sociedade fluminense. Voltando ao país, em abril de
1786, tornava a partir na mesma nau, Nossa Senhora da Vida, Santo António e
Madalena, e chegava finalmente a Goa a 29 de outubro deste referido ano.
O portentoso engenho de Bocage poderia elevar-se imenso, se houvesse
tido outra educação literária e científica, e soubesse subtrair-se à influência
do meio social em vez de buscar nele efémera popularidade. Camões era não só um
génio, mas o primeiro sábio da sua época, Bocage aprendera bem as línguas, o
latim, o francês e o italiano, trocara, porém, pelo culto exclusivo das musas
os conhecimentos de ciências naturais, que alcançara nas academias de marinha.
Foi por tudo isto, certamente, que ao chegar a Goa nem se impressionou com a
luxuriante vegetação oriental, nem com as religiões, raças, línguas e costumes
daqueles povos, e continuou cantor da arcádia preso às regras horacianas, e não
conseguiu produzir um poema. Satirizou primorosamente os índios, lamentou em
magníficos versos a decadência de Goa e das possessões portuguesas, e o seu
espírito não descansou enquanto esteve ausente da pátria. Em Goa encontrou
muita estima no desembargador Sebastião José Ferreira Barroco, também poeta, e
um dos maiores amigos de Filinto Elísio, conhecido em Lisboa pelo nome arcádico
de Albano, quando fazia versos à bela Alcipe, marquesa de Alorna,
nos celebrados outeiros de Chelas. Em 25 de fevereiro de 1789 havia sido
promovido a tenente, de infantaria da 5.ª companhia da guarnição da praça de
Damão, onde chegou a 6 de abril do mesmo ano, mas logo dois dias depois dali
desapareceu em companhia doutro oficial da mesma praça, indo ter, pela Porta do
Campo, a Macau, onde sofreu inclemências, em resultado desta arrojada aventura.
O que obrigaria Bocage a desaparecer tão precipitadamente da praça de
Damão, e a apresentar-se na colónia de Macau? Movê-lo-ia ainda o desejo de
imitar Camões, o prazer de visitar todos os lugares que ele percorrera? Seria
apenas excentricidade do seu temperamento irrequieto, ou extravagância do seu
espírito volúvel? Ninguém o poderá dizer, talvez nem ele o soubesse. Nestas
paragens foi ainda mais infeliz do que nas possessões da Índia, e só teve dois
homens que lhe valeram: Lázaro da Silva Ferreira, governador de Macau, que o
não pronunciou por haver desertado de Damão, e o negociante Joaquim Pereira de
Almeida, que recebendo-o e dando-lhe agasalho o apresentou na sociedade
macaense. Mas absolvida a culpa, o poeta não descansava com saudades da pátria,
dos amigos e dos amores.
Tratou logo de partir, e em Agosto de 1790 entrava a barra do Tejo.
Chegava então a Lisboa o eco da revolução francesa de 1789. A liberdade era o
hino que se cantava às escondidas por toda a parte, porque a polícia estava
cada vez mais intransigente. O poeta cantou logo contra o despotismo,
chamando-lhe sanhudo, inexorável, monstro que em pranto, em sangue a fúria
ceva, mas que não tiraniza do livre coração a independência, e
compôs muitos sonetos em honra da liberdade. Eram estes os sentimentos
políticos de Bocage e de todos os sócios da Nova Arcádia, salvas poucas
excepções. Nem escapava ao influxo o padre José Agostinho de Macedo, ex-frade
graciano, amigo do vate no seu regresso ao país, mais tarde seu declarado
inimigo, e por fim reconciliado com ele no período curto da fatal doença que o
prostrou. A Nova Arcádia, chamava-se uma sociedade de poetas daquela
época, para onde Bocage entrara em 1791, tomando o nome pastoril de Elmano
Sadino, e contra a qual se indispôs em 1793.
Em todo o tempo que durou esta guerra com os seus colegas, levantada por
vaidades de poetas e de literatos, jogaram-se as mais acerbas sátiras e vibraram-se
epigramas os mais frisantes. O Dr. Luís Correia do Amaral França, o Abade de
Almoster, Joaquim Franco de Araújo Barbosa, e Caldas Barbosa foram os mais
atingidos nesta polémica poética. Com José Agostinho de Macedo ainda a luta se
tornou mais acesa. O forte despotismo da época não podia deixar de. perseguir a
quem possuía sentimentos liberais, e Bocage era pouco acautelado na
manifestação das suas crenças políticas e. religiosas. No ano de 1797 foram
denunciados à intendência da polícia, como escritos pelo poeta, uns papeis
ímpios, sediciosos e satíricos, que apareciam clandestinamente com o título de Verdades
duras, e continham entre outras coisas a epístola Pavorosa ilusão da
eternidade. Bocage soube-o, e tentou fugir, mas foi preso a 10 de agosto do
referido ano, a bordo da corveta Aviso, que se destinava a partir para a
Baía.
Nas suas odes pinta o infeliz poeta os dissabores por que passou, a
entrada no Limoeiro, como ali o apalparam, o segredo em que foi lançado, as
perguntas que lhe fizeram, finalmente, tudo quanto sofreu até à transferência,
por solicitação de amigos e protectores, em 7 de novembro, para os cárceres da
inquisição. E tão rápido aí andaram com o processo, que a 17 de fevereiro de
1798 dava entrada no mosteiro de S. Bento da Saúde, de Lisboa, e a 22 de março
passava ao hospício de Nossa Senhora das Necessidades dos clérigos de S. Filipe
Néri. Os frades do Oratório com facilidade o doutrinaram, pois que em poucos
meses ficou desfrutando outra vez a liberdade, que alcançou por lhe não terem
encontrado no processo motivos de condenação, e também devido à protecção do
ministro José de Seabra e Silva. Uma beata, Maria Teodora Severiana Lobo
Ferreira, denunciou-o mais tarde, em 23 de novembro de 1802, ao Santo Ofício
como pedreiro livre, mas o processo apenas principiado não teve seguimento.
Em 1801 aceitou a proposta que lhe fez o naturalista brasileiro, o padre
José Mariano da Conceição Veloso para, mediante o ordenado de 24$000 réis,
fazer as traduções de vários poemas didácticos: Os Jardins de Delille; As
Plantas, de Castel; A Agricultura, de Roset; e O Consórcio das
flores, epístola de Lacroix; deste trabalho penosíssimo e de máxima
responsabilidade, se saiu Bocage brilhantemente, e é uma das coroas mais
viçosas da sua glória de poeta. Além dos poemas franceses, traduziu vários
poetas latinos e italianos. Em 1791 publicou o 1.º volume das suas Rimas,
os Queixumes do pastor Elmano, e os Idílios marítimos. Em 1799 publicou
o 2.º tomo das Rimas, e em 1804, o 3.º. Em 1805 declarou-se-lhe a
doença, a que devia de sucumbir. Ainda nesse ano publicou Os improvisos
e os Novos improvisos, escritos já durante a enfermidade.
Os últimos cinco anos, que precederam a sua morte, foram bem dolorosos
para o infeliz poeta, agitados de terrores e ansiedades, vendo-se pobre e
doente. Tinha um grande amigo, o dono do café das Parras, no Rossio,
José Pedro da Silva, conhecido pela alcunhado José Pedro das Luminárias,
que tinha por ele como que adoração, e que na sua doença muito auxiliou com
donativos pecuniários e promovendo-lhe a venda de livros, concorrendo também
com as despesas do funeral. Aquele café tornara-se notável, por se reunirem ali
habitualmente os poetas, pelas discussões e distúrbios, num gabinete reservado,
que intitulavam o Agulheiro dos sábios. Fora este o período mais
frisante da vida de Bocage, improvisando em outeiros, em saraus, em partidas,
com uma desenvoltura de costumes que muito concorreram, talvez, para lhe
abreviar a existência.
Quando o pai do poeta faleceu, veio para Lisboa sua irmã, D. Maria
Francisca, e na companhia do irmão viveu numa pobre casa da travessa de André
Valente, até que a morte lho roubou. Alguns dos seus inimigos se reconciliaram
com ele, assistindo-lhe aos últimos momentos; Curvo Semedo, e até o próprio
José Agostinho de Macedo, que mais o agredia com o seu génio maldizente e
invejoso. Em 15 de setembro de 1865, quando se completava o centenário do
nascimento do poeta popular foi apresentado nas salas do Clube Fluminense do
Rio de Janeiro, uma proposta, por José Feliciano de Castilho para se lhe erigir
um monumento. Abriu-se logo uma subscrição para esse fim, sendo as quantias
recebidas depositadas numa casa comercial. Pouco depois, deu-se na praça do Rio
de Janeiro, uma violenta crise, e perdeu-se grande parte do dinheiro,
salvando-se apenas uma pequena parte. José Feliciano de Castilho, apesar dessa
contrariedade, não desanimou, e vindo a Portugal, conseguiu realizar o seu
patriótico pensamento. A 22 de novembro de 1871 a câmara municipal de Setúbal
colocava a primeira pedra no monumento, que foi inaugurado a 21 de dezembro
seguinte. Em 1868 a referida câmara tinha já mandado colocar uma lápide
comemorativa na casa onde nascera o grande poeta.
BIBLIOGRAFIA:
ARRANJA,
Álvaro (2003). Bocage, a liberdade e a Revolução Francesa. Setúbal: Centro
de Estudos Bocageanos.
BRAGA,
Teófilo (1968). Obras de Bocage: Estudo introdutório: Bocage sua vida e
época literária. Porto: Lello & irmão.
COUTO,
António Maria do (1806). Memorias sobre a vida de Manoel Maria Barbosa de
Bocage. Lisboa: Ofificina de Simão Thaddeo Ferreira.
GONÇALVES,
Adelto (2003). Bocage, o perfil perdido. Lisboa: Editorial Caminho.
SILVA,
José Maria da Costa e (1820). Obras poeticas... precedidas de um discurso
sobre a vida e escriptos d'este poeta, ornada com o seu retrato. Lisboa:
Imp. J. B. Morando.
TORRES, João Romano (ed.) (2012). Portugal - Dicionário Histórico,
Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Vol.
2I, pág. 102-105 [em linha]. Lisboa: João Romano Torres. [Consultado 29 de
abr. de 2019]. Disponível
<http://www.arqnet.pt/dicionario/bocagemanuel.html.>
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