2012/03/09

"Mãos que prestam" - Curso de Economia Doméstica

 

(Imagem do livro Mãos que Prestam onde é possível visualizar duas mulheres que cozinham e que cuidam das crianças)

“Com este livro, esperamos oferecer à Rapariga Portuguesa, em especial à Aluna das Escolas Comerciais e Industriais, um guia de bom-senso. À professora, um apoio e um auxiliar.” (Silva & Buescu, s.d.:6)

 

Um verdadeiro manual para a futura “dona de casa” que se quer prendada, diríamos no mínimo, hoje, ao folhearmos Mãos que prestam, uma edição da Porto Editora, dos anos sessenta, outrora pertença da Biblioteca e Museu do Ensino Primário e que integra, atualmente, a coleção de Manuais Escolares da Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência. O livro, melhor, o manual que ora damos a conhecer – pois de verdadeiro manual se trata – dirige-se às raparigas dos Cursos de Formação Feminina; Geral do Comércio e Auxiliar de Laboratório Químico e custava, à época, a quantia de “Preço: 45$00”.

 

As autoras (Maria da Conceição Tavares da Silva e Maria Leonor Buescu) esmeraram-se por, fiéis aos cânones do tempo, seguir a fiel doutrina de – conforme referem no texto preambular: “[…] formar a Mulher de Hoje, diferente da de Ontem – unicamente votada às tarefas do Lar e da Maternidade – a qual, sem deixar de ser Esposa e Mãe, é também Profissional e Cidadã.” De início, fica de imediato sublinhado que o livro é “dedicado à geração da Mulher do Futuro” e pretende:

 

“[…] sistematizar um conjunto de conhecimentos práticos que, empiricamente adquiridos, exigiriam tempo e esforço que o ritmo da vida moderna, em muitos casos, recusa; coordenar um certo número de noções de ordem prática com princípios de ordem moral e, desse modo, espiritualizar, por assim dizer, as tarefas tantas vezes reduzidas pela rotina à monotonia e votadas ao desinteresse […]” (Silva & Buescu, s.d.:6)

 

 

  

(Capa do livro Mãos que Prestam. Curso de Economia Doméstica)

 

 

O próprio título é, em si mesmo, bastante claro e sugestivo. Pretende-se formar e educar futuras boas esposas e mães, verdadeiras “fadas do lar”, hábeis e desembaraçadas, capazes de cuidar da família com verdadeira dedicação e afinco, aprimoradas em tudo o que concerne ao Lar.

 Caso dúvidas houvesse, atente-se, a título de exemplo, no seguinte:


Programa do 1.º ANO

 

INTRODUÇÃO: Objecto e finalidade da Economia Doméstica. A boa dona de casa; sua influência nas condições económicas e morais da Família.

 

O VESTUÁRIO: Características de um vestuário saudável, económico e elegante. Arranjo e limpeza das roupas interiores e exteriores. Lavar e passar a ferro roupas de casa e interiores. Sabões, lixívias e outras substâncias desengordurantes. Passajar, remendar, apanhar malhas. Limpeza e conservação do calçado.

 

PRÁTICAS DE CULINÁRIA: Arranjo, limpeza e disposição dos utensílios de cozinha. Lavagem de loiças. Os combustíveis, seu estudo económico.

(Diário do Governo, n.º 8, 1.ª Série, de 12 de Janeiro de 1962).

Nada é descurado ou ficará por abordar – as “Práticas de Culinária”; o “Arranjo da Mesa”; a “Arte Doméstica” e “O Governo da Casa”, serão matérias abordadas nos dois anos seguintes. Deste modo, pretende-se que ao longo de três anos nada fique por ensinar à futura Mulher: Profissional, Esposa e Mãe. Nestas condições, e nas palavras das autoras, pretende-se oferecer à Rapariga Portuguesa “um guia de bom-senso. À Professora, um apoio e um auxiliar”.


O livro, na sua condição de manual, apresenta-se claramente estruturado, profusamente ilustrado, enumerando de modo claro, sistemático e exemplificativo os diversos itens e assuntos abordados ao longo das páginas.

 

A questão da instrução e da educação das mulheres, ou da educação feminina, e o estatuto da Mulher na sociedade é um assunto importante, amplamente debatido, porventura inserido no centro de um debate mais alargado em que o peso das tradições, e mesmo dos preconceitos, pode gerar alguma tensão e oposições. Normalmente, o eixo da controvérsia situa-se no suposto princípio de igualdade entre os sexos e na questão da liberdade e igualdade de direitos e deveres.

 

(Três imagens do livro Mãos que Prestam
- no canto superior esquerdo, 2.ª feira - barrela, com a imagem de uma mulher a lavar a roupa;
- no lado direito, 3.ª feira - remendar, com a imagem de uma mulher a costurar à mão;
- no canto inferior esquerdo, 4.ª feira - passar a ferro, com a imagem de uma mulher a passar a ferro.)

 

Se hoje nos parece, à luz dos nossos parâmetros, no mínimo, caricato e exagerado é preciso situar a obra no devido contexto histórico. Na altura em que é editado, Portugal vivia ainda sob o regime do Estado Novo, período durante o qual a educação e a instrução da Mulher eram definidas e orientadas em moldes muito limitados e controlados. Nascida e criada num ambiente familiar, era dentro de casa que a maioria das raparigas tomava a sua instrução, as mais das vezes fortemente centrada nos valores religiosos e morais apregoados pelo regime, sendo a instrução elementar e a educação familiar voltada para a preparação e realização das atividades domésticas e pouco mais. A ausência do lar da mãe para trabalhar, não era bem vista. Não esqueçamos igualmente que, por esta mesma altura, o ensino ministrado separava ainda os sexos e a sociedade – moralista e conservadora – tinha bem definido quais os papéis atribuídos ao homem e à mulher. A conceção católica do matrimónio aliada a uma imagética multissecular e conservadora conduz ao protótipo da imagem que se quer da mulher: feminina, recatada e pudica, mãe extremosa e companheira fiel e diligente.

 

“Na divisão das funções entre os cônjuges, a economia doméstica é reservada à mulher. Ela deverá ocupar-se das coisas da casa, da limpeza, da alimentação, do vestuário e da própria educação dos filhos. Tudo isto sob o signo da poupança e moderação no gasto.” (Reis, 1990:367)

 

Ao homem, ao “chefe de família” (na nomenclatura da época) caberia a responsabilidade de trabalhar fora do lar para prover ao sustento e manutenção material, ao passo que a sua companheira olhava pela economia caseira. Esta situação tradicionalíssima e multisecular, representa o perpetuar de um imaginário que materializa na mulher a representação da mãe cuidadosa e da governanta atenta que se esforça, ela própria, por assegurar o bem-estar da rotina quotidiana e o bom curso da maioria das tarefas domésticas.


(Imagem do livro Mãos que Prestam onde é possível visualizar a organização das peças de roupa em várias bolsas para lenços e meias, por exemplo)


 Entre outras, e em Portugal, em meados do século passado, são igualmente publicadas revistas (“Modas e Bordados”; “Menina e Moça”; “Eva”, etc.) que se destinam a um público claramente feminino e que propagam o retrato da “mulher ideal”. Dela se espera uma posição de recato, de apagamento, de servilidade. A literatura que se publica, escrita na sua maioria por homens, assim sugere e exemplifica.

 

A partir dos anos setenta, a sociedade de consumo ocidental que começou a desenhar-se no pós-guerra, começa a dar sinais de mudança.

 

“O novo regime do trabalho doméstico, não necessitando já de uma presença permanente no lar, permitiu a disponibilização quotidiana de uma força de trabalho feminina para a produção extradoméstica de bens e serviços. Este novo regime apelou também para essa força de trabalho, porque um segundo salário se tornou, muitas vezes, necessário para que as famílias – e as donas de casa – pudessem ter acesso a produtos, equipamentos e serviços que substituíram, total ou parcialmente, o trabalho doméstico tradicional.” (Duby e Perrot, 1991:492)

 

Em Portugal, à semelhança de outros países ocidentais, só a partir das décadas de setenta e oitenta, após a implantação do regime democrático, se começa a registar alguma (lenta e progressiva) abertura para a libertação doméstica da mulher. Para tanto, muito contribuiu o aperfeiçoamento e a divulgação de produtos e aparelhos auxiliares nas tarefas domésticas e a possibilidade de vir a adquirir fora progressivo número de tarefas e serviços, como a confeção de vestuário e a preparação ou o serviço de refeições. Nos grandes meios urbanos litorais, estendendo-se progressivamente ao interior, as mulheres passam a desempenhar novas funções e a ocupar postos de trabalho, outrora nas mãos de homens. Lenta, e progressivamente, a sociedade começa a mudar…

 

JMG

 

  

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

DUBY, Georges & PERROT, Michelle (1991). História das mulheres no Ocidente (Vol. 5). Lisboa: Afrontamento.

 

MIALARET, Gaston & VIAL, Jean. (s.d.). História mundial da educação (Vol. 3). Porto: Rés-Editora.

 

REIS, António (1990). Portugal contemporâneo (Vol. 4). Lisboa: Alfa.

 

SERRÃO, Joel & MARQUES, A.H. de Oliveira (1992). Nova história de Portugal (Vol. 12). Lisboa: Presença.

 

SILVA, Maria Lucinda Tavares da & BUESCU, Maria Leonor (s.d.). «Mãos que prestam» : curso de economia doméstica. Porto: Porto Editora ; Lisboa: Emp. Lit. Fluminense.

 

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