“Com
este livro, esperamos oferecer à Rapariga Portuguesa, em especial à Aluna das
Escolas Comerciais e Industriais, um guia de bom-senso. À professora, um apoio e um auxiliar.” (Silva &
Buescu, s.d.:6)
Um verdadeiro manual para a
futura “dona de casa” que se quer prendada, diríamos no mínimo, hoje, ao
folhearmos Mãos que prestam, uma
edição da Porto Editora, dos anos sessenta, outrora pertença da Biblioteca e
Museu do Ensino Primário e que integra, atualmente, a coleção de Manuais Escolares
da Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência. O livro, melhor, o
manual que ora damos a conhecer – pois de verdadeiro manual se trata – dirige-se
às raparigas dos Cursos de Formação Feminina; Geral do Comércio e Auxiliar de
Laboratório Químico e custava, à época, a quantia de “Preço: 45$00”.
As autoras (Maria da Conceição
Tavares da Silva e Maria Leonor Buescu) esmeraram-se por, fiéis aos cânones do
tempo, seguir a fiel doutrina de – conforme referem no texto preambular: “[…]
formar a Mulher de Hoje, diferente da de Ontem – unicamente votada às tarefas
do Lar e da Maternidade – a qual, sem deixar de ser Esposa e Mãe, é também
Profissional e Cidadã.” De início, fica de imediato sublinhado que o livro é
“dedicado à geração da Mulher do Futuro” e pretende:
“[…]
sistematizar um conjunto de conhecimentos práticos que, empiricamente
adquiridos, exigiriam tempo e esforço que o ritmo da vida moderna, em muitos
casos, recusa; coordenar um certo número de noções de ordem prática com
princípios de ordem moral e, desse modo, espiritualizar, por assim dizer, as
tarefas tantas vezes reduzidas pela rotina à monotonia e votadas ao
desinteresse […]” (Silva & Buescu, s.d.:6)
O
próprio título é, em si mesmo, bastante claro e sugestivo. Pretende-se formar e
educar futuras boas esposas e mães, verdadeiras “fadas do lar”, hábeis e desembaraçadas,
capazes de cuidar da família com verdadeira dedicação e afinco, aprimoradas em
tudo o que concerne ao Lar.
Caso dúvidas houvesse, atente-se, a título de
exemplo, no seguinte:
Programa
do 1.º ANO
INTRODUÇÃO: Objecto
e finalidade da Economia Doméstica. A boa dona de casa; sua influência nas
condições económicas e morais da Família.
O
VESTUÁRIO: Características de um vestuário saudável, económico e
elegante. Arranjo e limpeza das roupas interiores e exteriores. Lavar e passar
a ferro roupas de casa e interiores. Sabões, lixívias e outras substâncias
desengordurantes. Passajar, remendar, apanhar malhas. Limpeza e conservação do
calçado.
PRÁTICAS
DE CULINÁRIA: Arranjo, limpeza e disposição dos utensílios de
cozinha. Lavagem de loiças. Os combustíveis, seu estudo económico.
(Diário
do Governo, n.º 8, 1.ª Série, de 12 de Janeiro de 1962).
Nada é descurado ou ficará por abordar – as “Práticas de Culinária”; o “Arranjo da Mesa”; a “Arte Doméstica” e “O Governo da Casa”, serão matérias abordadas nos dois anos seguintes. Deste modo, pretende-se que ao longo de três anos nada fique por ensinar à futura Mulher: Profissional, Esposa e Mãe. Nestas condições, e nas palavras das autoras, pretende-se oferecer à Rapariga Portuguesa “um guia de bom-senso. À Professora, um apoio e um auxiliar”.
O livro, na sua condição de
manual, apresenta-se claramente estruturado, profusamente ilustrado, enumerando
de modo claro, sistemático e exemplificativo os diversos itens e assuntos
abordados ao longo das páginas.
A questão da instrução e da
educação das mulheres, ou da educação feminina, e o estatuto da Mulher na
sociedade é um assunto importante, amplamente debatido, porventura inserido no
centro de um debate mais alargado em que o peso das tradições, e mesmo dos
preconceitos, pode gerar alguma tensão e oposições. Normalmente, o eixo da
controvérsia situa-se no suposto princípio de igualdade entre os sexos e na
questão da liberdade e igualdade de direitos e deveres.
Se hoje nos parece, à luz dos
nossos parâmetros, no mínimo, caricato e exagerado é preciso situar a obra no
devido contexto histórico. Na altura em que é editado, Portugal vivia ainda sob
o regime do Estado Novo, período durante o qual a educação e a instrução da
Mulher eram definidas e orientadas em moldes muito limitados e controlados.
Nascida e criada num ambiente familiar, era dentro de casa que a maioria das
raparigas tomava a sua instrução, as mais das vezes fortemente centrada nos
valores religiosos e morais apregoados pelo regime, sendo a instrução elementar
e a educação familiar voltada para a preparação e realização das atividades
domésticas e pouco mais. A ausência do lar da mãe para trabalhar, não era bem
vista. Não esqueçamos igualmente que, por esta mesma altura, o ensino ministrado
separava ainda os sexos e a sociedade – moralista e conservadora – tinha bem
definido quais os papéis atribuídos ao homem e à mulher. A conceção católica do
matrimónio aliada a uma imagética multissecular e conservadora conduz ao
protótipo da imagem que se quer da mulher: feminina, recatada e pudica, mãe
extremosa e companheira fiel e diligente.
“Na divisão
das funções entre os cônjuges, a economia doméstica é reservada à mulher. Ela
deverá ocupar-se das coisas da casa, da limpeza, da alimentação, do vestuário e
da própria educação dos filhos. Tudo isto sob o signo da poupança e moderação
no gasto.” (Reis, 1990:367)
Ao homem, ao “chefe de
família” (na nomenclatura da época) caberia a responsabilidade de trabalhar
fora do lar para prover ao sustento e manutenção material, ao passo que a sua
companheira olhava pela economia caseira. Esta situação tradicionalíssima e
multisecular, representa o perpetuar de um imaginário que materializa na mulher
a representação da mãe cuidadosa e da governanta atenta que se esforça, ela
própria, por assegurar o bem-estar da rotina quotidiana e o bom curso da
maioria das tarefas domésticas.
Entre outras, e em Portugal, em meados do século passado, são igualmente publicadas revistas (“Modas e Bordados”; “Menina e Moça”; “Eva”, etc.) que se destinam a um público claramente feminino e que propagam o retrato da “mulher ideal”. Dela se espera uma posição de recato, de apagamento, de servilidade. A literatura que se publica, escrita na sua maioria por homens, assim sugere e exemplifica.
A partir dos anos setenta, a
sociedade de consumo ocidental que começou a desenhar-se no pós-guerra, começa
a dar sinais de mudança.
“O
novo regime do trabalho doméstico, não necessitando já de uma presença
permanente no lar, permitiu a disponibilização quotidiana de uma força de
trabalho feminina para a produção extradoméstica de bens e serviços. Este novo
regime apelou também para essa força de trabalho, porque um segundo salário se
tornou, muitas vezes, necessário para que as famílias – e as donas de casa –
pudessem ter acesso a produtos, equipamentos e serviços que substituíram, total
ou parcialmente, o trabalho doméstico tradicional.” (Duby e Perrot, 1991:492)
Em Portugal, à semelhança de
outros países ocidentais, só a partir das décadas de setenta e oitenta, após a
implantação do regime democrático, se começa a registar alguma (lenta e
progressiva) abertura para a libertação doméstica da mulher. Para tanto, muito
contribuiu o aperfeiçoamento e a divulgação de produtos e aparelhos auxiliares
nas tarefas domésticas e a possibilidade de vir a adquirir fora progressivo
número de tarefas e serviços, como a confeção de vestuário e a preparação ou o
serviço de refeições. Nos grandes meios urbanos litorais, estendendo-se
progressivamente ao interior, as mulheres passam a desempenhar novas funções e
a ocupar postos de trabalho, outrora nas mãos de homens. Lenta, e
progressivamente, a sociedade começa a mudar…
JMG
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA
DUBY, Georges & PERROT,
Michelle (1991). História das mulheres no
Ocidente (Vol. 5). Lisboa: Afrontamento.
MIALARET, Gaston & VIAL,
Jean. (s.d.). História mundial da
educação (Vol. 3). Porto: Rés-Editora.
REIS, António (1990). Portugal contemporâneo (Vol. 4). Lisboa:
Alfa.
SERRÃO,
Joel & MARQUES, A.H. de Oliveira (1992). Nova história de Portugal (Vol. 12). Lisboa: Presença.
SILVA,
Maria Lucinda Tavares da & BUESCU, Maria Leonor (s.d.). «Mãos que prestam» : curso de economia
doméstica. Porto: Porto Editora ; Lisboa: Emp. Lit. Fluminense.
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