2022/10/17

Bibliomania - Colecionando Livros e Manuscritos (Parte II)

 

«Não há coleção tola ou ridícula quando feita com arte, gosto e conhecimento»

                                                                                    Rubens Borba de Moraes

 

«De facto, ainda hoje, depois de me tornar livreiro, me parecem bizarras as pessoas que nos compram livros como quem nos dá uma palmada encorajadora nas costas, a dar alento para continuarmos nesta nobre luta.»

                                                                                            Carlos Maria Bobone

 

 

                                                               ©DSDA

 

O primeiro autor citado em epígrafe – Rubens Borba de Moraes (1899 - 1986) – foi um bibliotecário, bibliófilo, bibliógrafo, historiador e pesquisador brasileiro que desempenhou um papel importantíssimo no universo da bibliografia brasiliana. Tendo-se formado em Letras na Europa (Genebra), dedicou a sua vida aos livros e à biblioteconomia. Organizou algumas coleções de livros mas foi, também, ele próprio, um colecionador de livros que angariou enorme prestígio. Rubens era uma pessoa objetiva, prática e direta, que aproveitava todas as situações com que se deparasse para realizar pesquisas ligadas ao seu interesse bibliográfico. Qualquer oportunidade que aparecesse levava-o a correr bibliotecas na expectativa de encontrar novas descobertas de livros escritos sobre o Brasil. Seguia exaustivamente a pista dos livros que lhe interessavam, o que muitas vezes o levava a viajar por múltiplos países. Borba de Moraes dedicou-se especialmente a colecionar os autores brasileiros do período colonial.

Tendo compilado e analisado criticamente as mais importantes obras já escritas no Brasil, o exemplo de Borba de Moraes é ideal para introduzir a ideia que um colecionador de livros e manuscritos pode abordar a sua tarefa sob diferentes pontos de vista. Há colecionadores, por exemplo, que concentram toda a sua atenção e recursos sobre uma época específica, outros sobre uma determinada figura ou acontecimento histórico, outros ainda sobre uma atividade que sobre eles exerce um forte fascínio ou com a qual têm uma particular afinidade. O colecionar sobre uma determinada figura ou tema científico, por exemplo, permite desbravar e conhecer os meandros da investigação e do conhecimento humano. De qualquer modo, colecionando de um modo mais alargado, mais estreito e aprofundado, ou de forma mais seletiva, o segredo recai sempre em fazer escolhas e colecionar com verdadeiro gosto íntimo e pessoal. Uma coleção, seja ela feita de livros ou de outros objetos, reflete, no limite, o mais íntimo do seu possuidor. Resulta num testemunho e memória familiar que perdura. Mais do que revelar o gosto do colecionador em inventariar, catalogar e descrever as peças que o fascinam, revela, acima de tudo, o modo como olhou para os objetos e a importância que atribuiu ao situá-los no contexto da História; nomeadamente, da sua história particular, inscrevendo-os, assim, num trajeto de continuidade, de curso de vida, do qual também fez parte.

 

                                                                                               ©DSDA 

Não há mal nenhum em colecionar pensando em termos de investimento e retorno financeiro – muitos colecionadores prosperaram e aumentaram a sua grande coleção graças e isso, comprando e vendendo –, de um modo geral, livros raros e manuscritos valorizam apreciavelmente com o passar do tempo, às vezes algo lentamente, mas valorizam com certeza e segurança, ao contrário de outros bens transacionados no vasto mercado da arte e do colecionismo, ultrapassando e não sendo afetados por determinado tipo de consequências e flutuações. Neste contexto, os leiloeiros especialistas, os livreiros antiquários e os colecionadores empedernidos, desempenham um papel específico e determinante no desenrolar das vendas e aquisições e na composição e evolução do mercado. Se é verdade que o mundo dos livros e dos livreiros está repleto de histórias que parecem emanadas dos próprios livros, também não será menos verdade que muitas das ideias feitas, caprichos e obstinações emanam dos desmandos do colecionismo.

Carlos Maria Bobone (n. 1993), da mais nova e recente geração de livreiros alfarrabistas portugueses, ele próprio descendente e herdeiro pessoal da nobre profissão, refere na narrativa em que se empenhou após anos de prática e contacto direto com o mundo dos livreiros e das livrarias – “A Religião dos Livros”:

«[…] no fim do século XIX e princípios do século XX assistiu-se a uma espécie de época dourada para o comércio do livro. Conseguiam-se produzir livros a um preço acessível, a leitura tornou-se realmente um dos entreténs da burguesia, pelo que a sua grande exploração enquanto objeto de lazer se dá nesta altura. Enquanto as bibliotecas setecentistas são constituídas maioritariamente por livros técnicos ou religiosos, nas bibliotecas do fim do século XIX vê-se claramente a transformação do livro em papel para toda a obra. É natural, então, que o comércio também acompanhe a variação. Fascículos, edições populares, edições ilustradas, clubes do livro, edições monumentais, catálogos, quase todas as técnicas que vemos hoje no mercado livreiro tiveram os seus primórdios por esta altura. […]»

O livreiro de livros raros ou antigos tem de conhecer e dominar uma série de pormenores que o livreiro de livros usados pode dispensar. Por exemplo, é absolutamente necessário conhecer os vários tipos de encadernação e ornamentação de pastas, guardas e lombadas, verificar a existência de capas de brochura, marcas de posse e/ou dedicatórias, estado geral dos folios e demais marcas impercetíveis que contribuam para a valorização ou desvalorização do livro. O mercado do livro raro, lidando com peças de coleção, tem de estar atento a determinadas características e detalhes que muitas vezes não saltam à vista, e que, consequentemente, podem desvalorizar ou, pelo contrário, tornar o exemplar “único”, extremamente disputado e valorizado entre os seus pares.

JMG

Bibliografia:


ANTUNES, Cristina (2017). Rubens Borba de Moraes: anotações de um bibliófilo. São Paulo: Publicações BBM.

AZEVEDO, Pedro de (2021). Vida com Livros – Livros com Vida, vol. I. Lisboa: ed. do autor.

BOBONE, Carlos Maria (2022). A religião dos livros. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

FEBVRE, Lucien e MARTIN, Henri-Jean (2000). O Aparecimento do Livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

MANGUEL, Alberto (2018). Embalando a Minha Biblioteca. Lisboa: Tinta-da-China.

MARTINS, José Vitorino de Pina (2007). Histórias de Livros para a História do Livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

PINHEIRO, Ana Virgínia (1989). Que é livro raro?: uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro: Presença.

RUIZ, Pilar (2004). A bibliofilia, uma paixão… dicionário breve. Amadora: Ediclube - Edição e Promoção do Livro, Lda.

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