«Não há coleção tola ou ridícula quando feita com arte, gosto e conhecimento»
Rubens Borba de Moraes
«De facto, ainda hoje, depois de me tornar livreiro, me parecem bizarras as pessoas que nos compram livros como quem nos dá uma palmada encorajadora nas costas, a dar alento para continuarmos nesta nobre luta.»
Carlos Maria Bobone
O primeiro autor citado em epígrafe – Rubens Borba de Moraes
(1899 - 1986) – foi um bibliotecário, bibliófilo, bibliógrafo, historiador e
pesquisador brasileiro que desempenhou um papel importantíssimo no universo da
bibliografia brasiliana. Tendo-se formado em Letras na Europa (Genebra),
dedicou a sua vida aos livros e à biblioteconomia. Organizou algumas coleções
de livros mas foi, também, ele próprio, um colecionador de livros que angariou
enorme prestígio. Rubens era uma pessoa objetiva, prática e direta, que
aproveitava todas as situações com que se deparasse para realizar pesquisas
ligadas ao seu interesse bibliográfico. Qualquer oportunidade que aparecesse
levava-o a correr bibliotecas na expectativa de encontrar novas descobertas de
livros escritos sobre o Brasil. Seguia exaustivamente a pista dos livros que
lhe interessavam, o que muitas vezes o levava a viajar por múltiplos países. Borba
de Moraes dedicou-se especialmente a colecionar os autores brasileiros do
período colonial.
Tendo compilado e analisado criticamente as mais importantes
obras já escritas no Brasil, o exemplo de Borba de Moraes é ideal para introduzir a ideia que um
colecionador de livros e manuscritos pode abordar a sua tarefa sob diferentes
pontos de vista. Há colecionadores, por exemplo, que concentram toda a sua
atenção e recursos sobre uma época específica, outros sobre uma determinada
figura ou acontecimento histórico, outros ainda sobre uma atividade que sobre
eles exerce um forte fascínio ou com a qual têm uma particular afinidade. O
colecionar sobre uma determinada figura ou tema científico, por exemplo,
permite desbravar e conhecer os meandros da investigação e do conhecimento
humano. De qualquer modo, colecionando de um modo mais alargado, mais estreito
e aprofundado, ou de forma mais seletiva, o segredo recai sempre em fazer
escolhas e colecionar com verdadeiro gosto íntimo e pessoal. Uma coleção, seja
ela feita de livros ou de outros objetos, reflete, no limite, o mais íntimo do
seu possuidor. Resulta num testemunho e memória familiar que perdura. Mais do
que revelar o gosto do colecionador em inventariar, catalogar e descrever as
peças que o fascinam, revela, acima de tudo, o modo como olhou para os objetos
e a importância que atribuiu ao situá-los no contexto da História;
nomeadamente, da sua história particular, inscrevendo-os, assim, num trajeto de
continuidade, de curso de vida, do qual também fez parte.
Não há mal nenhum em
colecionar pensando em termos de investimento e retorno financeiro – muitos
colecionadores prosperaram e aumentaram a sua grande coleção graças e isso,
comprando e vendendo –, de um modo geral, livros raros e manuscritos valorizam
apreciavelmente com o passar do tempo, às vezes algo lentamente, mas valorizam
com certeza e segurança, ao contrário de outros bens transacionados no vasto
mercado da arte e do colecionismo, ultrapassando e não sendo afetados por
determinado tipo de consequências e flutuações. Neste contexto, os leiloeiros
especialistas, os livreiros antiquários e os colecionadores empedernidos,
desempenham um papel específico e determinante no desenrolar das vendas e
aquisições e na composição e evolução do mercado. Se é verdade que o mundo dos
livros e dos livreiros está repleto de histórias que parecem emanadas dos
próprios livros, também não será menos verdade que muitas das ideias feitas,
caprichos e obstinações emanam dos desmandos do colecionismo.
Carlos Maria Bobone (n. 1993), da mais nova e recente geração
de livreiros alfarrabistas portugueses, ele próprio descendente e herdeiro
pessoal da nobre profissão, refere na narrativa em que se empenhou após anos de
prática e contacto direto com o mundo dos livreiros e das livrarias – “A
Religião dos Livros”:
«[…] no
fim do século XIX e princípios do século XX assistiu-se a uma espécie de época
dourada para o comércio do livro. Conseguiam-se produzir livros a um preço
acessível, a leitura tornou-se realmente um dos entreténs da burguesia, pelo
que a sua grande exploração enquanto objeto de lazer se dá nesta altura.
Enquanto as bibliotecas setecentistas são constituídas maioritariamente por
livros técnicos ou religiosos, nas bibliotecas do fim do século XIX vê-se
claramente a transformação do livro em papel para toda a obra. É natural,
então, que o comércio também acompanhe a variação. Fascículos, edições
populares, edições ilustradas, clubes do livro, edições monumentais, catálogos,
quase todas as técnicas que vemos hoje no mercado livreiro tiveram os seus
primórdios por esta altura. […]»
O livreiro de livros raros ou antigos tem de conhecer e
dominar uma série de pormenores que o livreiro de livros usados pode dispensar.
Por exemplo, é absolutamente necessário conhecer os vários tipos de
encadernação e ornamentação de pastas, guardas e lombadas, verificar a
existência de capas de brochura, marcas de posse e/ou dedicatórias, estado
geral dos folios e demais marcas impercetíveis que contribuam para a
valorização ou desvalorização do livro. O mercado do livro raro, lidando com
peças de coleção, tem de estar atento a determinadas características e detalhes
que muitas vezes não saltam à vista, e que, consequentemente, podem
desvalorizar ou, pelo contrário, tornar o exemplar “único”, extremamente
disputado e valorizado entre os seus pares.
JMG
Bibliografia:
ANTUNES, Cristina (2017). Rubens Borba de Moraes: anotações de um
bibliófilo. São Paulo: Publicações BBM.
AZEVEDO, Pedro de (2021). Vida com Livros – Livros com Vida, vol. I.
Lisboa: ed. do autor.
BOBONE, Carlos Maria (2022). A religião dos livros. Lisboa: Fundação
Francisco Manuel dos Santos.
FEBVRE, Lucien e MARTIN, Henri-Jean (2000). O Aparecimento do Livro. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
MANGUEL, Alberto (2018). Embalando
a Minha Biblioteca. Lisboa: Tinta-da-China.
MARTINS, José Vitorino de Pina (2007). Histórias de Livros para a História do Livro. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
PINHEIRO, Ana Virgínia (1989). Que é livro raro?: uma metodologia para o estabelecimento de critérios
de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro: Presença.
RUIZ, Pilar (2004). A bibliofilia, uma paixão… dicionário breve.
Amadora: Ediclube - Edição e Promoção do Livro, Lda.
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