2016/11/23

Artigo: "O Mein Kampf terá lugar numa biblioteca pública?"

(Imagem da capa de dois exemplares da obra Mein Kampf de Hitler. Retirada da internet)


Ter o livro certo para a pessoa certa no momento adequado é um objetivo louvável para as bibliotecas. Definir o que é um livro «bom» é uma tarefa muito subjetiva.”

 

Ann Theis

 

 

Qualquer obra literária deverá ter direito a constar do acervo de uma qualquer biblioteca pública entendendo-se, para o efeito, que tal obra seja útil e necessária e sirva os interesses e necessidades do público local que a biblioteca atenda. Não é suposto que uma coleção biblioteconómica (voltada para o público) que se pretende abrangente e inclusiva, seja construída à imagem e semelhança do seu responsável, resultado dos seus interesses ou simpatias, muito menos sob a sombra de uma ideologia política, crença religiosa ou qualquer outra espécie de condicionante. A postura construtiva passa por formar uma coleção que se adeque a servir os propósitos e os interesses da comunidade, seguindo uma política de seleção previamente definida da forma o mais objetiva possível.

Tal situação, porém, ainda nos dias de hoje poderá suscitar espanto, discórdia ou revolta; pois não se encontra ainda totalmente assimilado o facto de que uma biblioteca que se pretenda atual, livre, aberta e democrática, reflita as tendências atuais e a evolução da sociedade, bem como a memória da humanidade e o produto da sua criação (concorde-se, ou não, com o legado herdado). A prestação efetiva de um serviço público de qualidade na área da informação passa necessariamente – entre outros importantes princípios – por garantir o livre acesso a um fundo documental que se pretende rico e diversificado e que espelhe as diversas tendências, formas de expressão e correntes de pensamento intelectual da humanidade (histórico, político, literário, filosófico, religioso ou outro). Ann Theis, a autora citada na epígrafe deste texto, refere a propósito: “Muitas definições de ‘boa’ literatura ou ‘boas’ leituras poderiam ser tão calorosamente debatidas como a questão de abate/selecção é debatida, quer pelos bibliotecários, como pelos não bibliotecários. Os livros representam o conjunto do património escrito da civilização... a remoção de alguma coisa é considerada profana”.

Repositório de um vasto e diversificado conjunto de documentação, a biblioteca pública destaca-se, precisamente, não só pelo forte laço que estabelece com a comunidade que serve e o(s) seu(s) diferente(s) público(s) – crianças; jovens; adultos e idosos – mas por se constituir ela própria como um espaço plural onde as ideias, as opiniões, as crenças políticas ou religiosas, o sexo, a raça, a nacionalidade ou o estrato social não figurarem como factores discriminatórios. Na biblioteca pública todos são bem-vindos e acolhidos, a todos é dado igual tratamento e liberdade de expressão (naturalmente, dentro dos limites que a lógica de funcionamento da biblioteca imponha), a todos é reconhecido o direito de terem ideias e ideais próprios e diferentes; em suma, a biblioteca pública – enquanto espaço democrático – apresenta-se como um amplo fórum de liberdade, um espaço sem censura, livre, em que o acesso à informação se constitui como um direito básico e natural. Como querer ter pessoas educadas, participativas, interessadas, envolvidas, motivadas... aptas a formar e emitir um juízo crítico sobre as coisas, se lhes for vedado ou restringido o direito à informação?

Por esta ordem de razões, a biblioteca pública – enquanto instituição – assenta em importantes princípios consagrados, de entre os quais cumpre destacar: a “liberdade de escolha” – qualquer um deverá ter a possibilidade de aceder aos fundos documentais que são disponibilizados (regime de livre acesso às estantes); a “gratuitidade dos serviços” – a biblioteca pública sendo financiada pelo erário público, pelo dinheiro dos contribuintes, é um bem de todos, de toda a população; o “empréstimo domiciliário” – porventura o mais nobre dos serviços prestados pela biblioteca pública e que permite que cada um requisite e possa levar consigo as obras que deseja ler; o “carácter enciclopédico das colecções” – a biblioteca pública não existe, apenas, para disponibilizar livros ditos “técnico-científicos sérios”; deve pressupor uma oferta generalizada, abrangente, dirigida a toda a gente, sem exceção. É deste modo que se deve falar e entender a abrangência temática das colecções, o carácter genérico das publicações e, mais recentemente, a multiplicidade da tipologia de documentos e a introdução das modernas tecnologias de informação (o novo conceito de mediateca que já não pressupõe, apenas, a abrangência de livros).

 O acesso à informação é, hoje, reconhecido como um direito básico do ser humano e o mesmo encontra-se consagrado na Magna Carta das bibliotecas públicas – o Manifesto da UNESCO Sobre Bibliotecas Públicas – o qual refere expressamente que: “a biblioteca pública é o centro local de informação, tornando prontamente acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento e a informação de todos os géneros” (...), sendo que: “a participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação”. Nesta última frase encontram-se, porventura, os princípios mais caros à missão da biblioteca pública enquanto lugar privilegiado de educação (aproximando e dando a descobrir o prazer da leitura, apoiando a educação individual e a auto-formação); promotor do acesso a uma informação diversificada (quer quanto à forma quer quanto aos conteúdos) e plural, capaz de responder, em termos de oferta de serviços e consumos culturais, educativos e informativos, às necessidades crescentes da sociedade contemporânea.

O livre acesso às ideias e à total liberdade de expressão são fundamentais no processo educativo e evolutivo do ser humano, e é deste modo que o Manifesto (a primeira versão data de 1949) surge intimamente relacionado com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (adoptada e proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1948) a qual, sob o artigo 19.º, consagra que: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e expressão o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

Revelando profundo sentido de dever e respeito por este mesmo princípio, os profissionais de informação em Portugal uniram esforços e, em 1999, apresentaram e adoptaram o Código de Ética o qual, sob o n.1 (Liberdade Intelectual) consagra que: “Os profissionais de informação em Portugal são defensores intransigentes do acesso à informação e unem esforços para que esta atitude seja corroborada por uma prática, contínua e exigente, de alerta contra todas as formas possíveis de censura”, estando-‑lhes cometidas, entre outras, as seguintes responsabilidades:

1.1. Facilitar o acesso dos utilizadores dos serviços de informação a todo o género de informações publicadas sob qualquer suporte;

(...)

1.6. Explicitar, na definição da política de informação do serviço a seu cargo, que a missão principal deste é a disponibilização da informação, de todos os géneros, em todos os suportes, para todos os utilizadores;

1.7. Não permitir interferências exteriores, que possam impedir ou dificultar o acesso à informação disponível nos seus serviços;

1.8. Não permitir que as suas opiniões pessoais interfiram na liberdade de acesso à informação;

1.9. Opor-se à implementação de qualquer solução tecnológica que possa limitar ou manipular o acesso à informação;

1.10. Elaborar, participar na elaboração, conhecer, apoiar e divulgar a legislação que diz respeito ao direito de acesso à informação sem qualquer interferência.


A censura deve, obrigatoriamente, constar da agenda do profissional bibliotecário. Alertar e educar todos os funcionários de biblioteca para as questões de ética, liberdade intelectual e direito à informação é fundamental para o cumprimento e avanço dos direitos, deveres e missão da biblioteca. Daí que discutir a censura e as acções apropriadas para a combater, resultará mais profícuo existindo uma associação que a nível nacional promova uma política de liberdade intelectual e familiarize os seus membros com o código dessa política. As bibliotecas podem sempre incorporar a política nacional no seu quotidiano e recorrer à “sua declaração de princípios” quando postas perante situações de censura.

Todavia, apesar de todos os esforços para a construção e ampliação de um espaço democrático, promotor do livre debate e do respeito pelo outro, do direito à diferença e à pluralidade, é preciso continuar a tirar lições do passado e a não baixar os braços, pois o fenómeno da censura, se não continuou a prosperar, terá continuado a fazer-se sentir de uma forma sempre latente. O fenómeno da censura não é novo; é, aliás, muito antigo. Veio, contudo, a intensificar-se com o aparecimento da imprensa, altura em que surge sob duas grandes formas: a censura repressiva e a censura prévia. Desde então, quer na mão do poder eclesiástico, quer na mão do poder civil, a repressão não mais deixou de fazer sentir os seus efeitos sobre o livro. Escrever livros, imprimir livros, publicar livros, vender livros... passou a constituir atividade perigosa e delituosa. Permitir o acesso à leitura de obras banidas nas bibliotecas – alvo de pesadas sanções.

Ora, o direito à leitura, à escrita, à partilha da palavra, é uma consequência necessária, um instrumento indispensável e inalienável. Bem o expressou Maria Manuela Cruzeiro quando afirmou que:

 

Não pode ser livre quem não está informado do que se passa no mundo em que vive e na sociedade em que está integrado. Não pode ser livre quem não tiver a possibilidade e a capacidade de escolher, entre tudo o que o rodeia, daquilo que mais lhe convém e de que mais gosta. A liberdade, consignada na informação do que existe, é dada ao indivíduo através do que os outros indivíduos produzem nos domínios da ciência, da técnica, da ficção e da arte. Essa liberdade vai-se adquirindo progressivamente desde o berço, desde o ‘ver’ e o ‘ouvir’. Todo o indivíduo tem o direito de dispor da possibilidade de, diretamente pelos seus próprios meios, poder estar informado do que lhe é conveniente ou prejudicial, de poder, por exemplo, na beira de um caminho, saber se a água que corre de uma fonte é própria ou imprópria para beber. Mas quando o indivíduo adquiriu a capacidade de falar, ele adquiriu simultaneamente a necessidade de falar. Impedi-lo de satisfazer essa necessidade é violentá-lo, é escravizá-lo e roubar-lhe a necessidade de exercer um direito. E quando o indivíduo adquiriu a capacidade de ler, adquiriu ao mesmo tempo, não só a necessidade de ler, mas a fome de ler. Porque quanto mais conhecimentos adquire, mais coisas desconhecidas o indivíduo pressente e quer conhecer. Por outro lado, o ser humano é, por excelência, comunicativo. Assim como tem ânsia de conhecimento, tem também ânsia de transmitir esse conhecimento. E quando se impede um indivíduo de comunicar com o seu semelhante, está-se-lhe a roubar o direito à liberdade de comunicação.

Por isso, os homens livres condenam a censura.”

 

É uma citação algo longa, mas que denota – de modo particularmente expressivo e evidente – a necessidade inata a todo o indivíduo de comunicar, de criar, de conhecer e de poder partilhar, sem restrições, a sua vivência, opinião e experiência com o seu semelhante.

 Hoje, como ontem, reconhece-se e luta-se pela liberdade de expressão e do pensamento, tendo como objetivo uma informação livre e pluralista, garante da democracia, da defesa da paz e do progresso político, social e económico de um país. Recorde-se, a propósito, a exposição que a Biblioteca Pública de Braga apresentou por ocasião da comemoração do XX aniversário do 25 de Abril de 1974 sobre o tema «Livros Proibidos no Regime Fascista». Nela se davam a conhecer uma série de obras que o anterior regime proibia a venda e circulação e cuja leitura era vedada nas bibliotecas públicas, de acordo com as diretrizes emanadas da Direção dos Serviços de Censura, da Direcção Geral de Informação, do Ministério da Educação ou dos Serviços de Depósito Legal da Biblioteca. Grande número de autores estrangeiros estavam proibidos e era praticamente impossível editá-los em português. E não se tratava, apenas, de autores abertamente políticos como Marx, Engels, Lenine ou Trotsky. Um vasto número de conhecidos autores estrangeiros (Jorge Amado, Simone de Beauvoir, Sartre, Simone Weil, André Malraux, etc.) e nacionais (Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, José Cardoso Pires, Virgílio Ferreira, Manuel Alegre, Urbano Tavares Rodrigues, etc.) não podia ser lido, quanto mais, publicado! Para além dos temas manifestamente políticos, questões ligadas à sexualidade, à Igreja Católica, ao marxismo ou ao comunismo eram sistematicamente alvo de perseguição e censura. A política cultural repressiva impedia o debate e a circulação de ideias e proibia que as pessoas lessem obras de alguns dos mais importantes vultos da cultura portuguesa e mundial.

 No fundo, a questão da censura passa, em muito, por uma questão política e em todas as épocas e latitudes têm surgido Estados (particularmente os mais conservadores) que denotam particular tendência e entusiasmo no que concerne ao domínio da informação e divulgação e ao acesso à informação e às ideias, recorrendo à censura como ferramenta de controlo social. E isso constitui sinal evidente de grave ameaça à liberdade intelectual. Em certo sentido, segundo refere Bob Usherwood, “(...) toda a censura é política, porque a liberdade de expressão e a liberdade de divulgar informação constituem, em si, ideais políticos. Restringir essa liberdade, a que Roosevelt chamou ‘a primeira liberdade’, é, pois, um acto político”. Não é necessário recuar muito para obter exemplos. Recorde-se o que em pleno século XX aconteceu na Alemanha nacional-socialista, em vários países do antigo Bloco de Leste, na África do Sul ou durante o regime de McCarthy, nesse bastião da democracia e dos direitos humanos que são os Estados Unidos da América. Em todos eles, as bibliotecas públicas foram alvo sistemático de expurgo e os livros retirados e queimados num fanático ressuscitar dos tristemente célebres autos de fé da Santa Inquisição medieva.

Os mecanismos do aparato repressivo revelam-se praticamente os mesmos em todo o lado, embora os respetivos graus e meios de pressão possam variar. O mais interessante, porém, se não mesmo o mais relevante e surpreendente, é verificar que também acontece nas mais emblemáticas e exemplares democracias.

Como sublinha Ann Curry: “Os bibliotecários deverão, naturalmente, obedecer a leis, mas evitar determinados assuntos apenas ‘por uma questão de segurança’ resultaria numa colecção censurada, mutilada, que poucos ou nenhuns propósitos serviria”.

Muitas vezes, a tónica da questão tem sido também colocada no papel do próprio bibliotecário e na responsabilidade que este deveria assumir enquanto responsável por selecionar e disponibilizar o material que chega às mãos das pessoas, particularmente dos jovens e das crianças, sendo certo que muita gente associa propósitos educativos e pedagógicos à biblioteca. Aumentar a consciencialização dos profissionais da informação ajuda à visibilidade do problema, mas nesta, como noutras áreas, há questões éticas particularmente importantes que se colocam, por exemplo: “quem” e “como” deverá decidir sobre o bem e o mal? Trata-se de um ponto particularmente sensível, pois a fronteira que divide a censura, da selecção do material, é uma linha muito ténue e facilmente conducente a esse fenómeno tão, ou mais complexo, que é o da autocensura (resultado de preconceitos individuais que podem ter como base as mais diversas origens). O equilíbrio entre as preferências pessoais e o interesse público constitui, porventura, o lado mais difícil da gestão das colecções. Seleccionar passa por, de boa-fé, analisar o conteúdo de um livro e por aferir da contribuição que o mesmo poderá aportar à comunidade. Ao passo que a censura busca, normalmente no exterior, razões (convicções e ideologias perfiladas pelo autor, nacionalidade, raça, gostos ou hábitos pessoais) que garantam a sua rejeição.

Bibliotecários alertados e formados estão, naturalmente, mais predispostos a fazer um julgamento rigoroso, isento e capaz quando envolvidos na tarefa de seleccionar material e mais aptos a defenderem o material que seleccionaram. Como explicita Waldomiro Vergueiro: “O seleccionador tem fé na inteligência do usuário, partindo do pressuposto de que este saberá retirar da obra o que de positivo existe na mesma; o censor, por outro lado, tem fé apenas em sua própria inteligência e capacidade de julgamento, imaginando que todas as demais pessoas são poços de ingenuidade que precisam ser protegidos das mazelas e malfeitos da vida”. Apesar dos receios (fundados ou infundados), dos escrúpulos do bibliotecário em seleccionar determinada obra para a sua biblioteca, haverá sempre que reconhecer (em primeiro lugar) que existirá uma procura para esse tipo de documento na sua comunidade de leitores. É essa procura que determina e que permite identificar as necessidades dos membros da comunidade.

Certo, porém, é que muitos agentes estão em jogo – os pais, a família, a escola, os amigos, etc. – e passar o ónus da manutenção e vigilância por inteiro ao bibliotecário poderá ser fácil, mas, convenhamos, não se afigura inteiramente justo. Do mesmo modo que partir da premissa de que o conteúdo de um livro, cujo teor seja nitidamente de caráter sexual, racista ou de violência explícita, conduz automaticamente ao desencadear de atitudes ou comportamentos subversivos no comum dos cidadãos, não pode ser assumido como um dado inequivocamente adquirido e comprovado. Todos nos encontramos, do mesmo modo, expostos aos mais variados estímulos e, se bem que uns tendam a revelar-se mais influenciáveis do que outros, é perigoso (e seria lícito?) determinar o que pode estar reservado a uns e não a outros. Retomando, ainda, as palavras de Manuela Cruzeiro:

 

Nem sempre aquilo que o homem livre tem para adquirir é de boa qualidade. Nem sempre a informação a colher é útil. Nem sempre a fonte de informação é boa. Mas faz parte integrante da liberdade do ser humano ser ele próprio capaz de escolher o que lhe convém ou o que ele rejeita. Por isso, os homens livres condenam a censura. A censura total ou parcial. A censura moral, ideológica ou qualquer outra, porque todas elas são atentatórias da liberdade. Qualquer espécie de censura será sempre o equivalente às sociedades obscurantistas que, impedindo o homem de satisfazer a sua sede de conhecimento, o violentam e o escravizam, impedindo-o de exercer um dos seus mais elementares direitos – o direito à informação”.

 

O já citado Manifesto da UNESCO Sobre Bibliotecas Públicas não podia, do mesmo modo, deixar de referir-se abertamente ao tema estatuindo que:

 

As colecções devem refletir as tendências atuais e a evolução da sociedade, bem como a memória da humanidade e o produto da sua imaginação. As colecções e os serviços devem ser isentos de qualquer forma de censura ideológica, política ou religiosa e de pressões comerciais”.

 

No entanto, apesar de toda as experiências e evidências passadas, e demais esforços expendidos, os tempos que correm nem sempre se têm revelado favoráveis à propagação de novas ideias e isso reflete-se, e é particularmente sentido, por aqueles que lidam com a sua divulgação, sejam eles: bibliotecários, livreiros, escritores, editores, artistas, galeristas, etc. Acontece que sempre existiu, e existe, um determinado conjunto de pessoas e grupos de pressão que, simplesmente, não estão dispostos a aceitar ideias que manifestamente lhes desagradam e então optam pela via mais fácil: bani-las. As vítimas desta atitude de ignorância, desrespeito, intolerância e antagonismo não são apenas as instituições, as atividades comerciais; é, acima de tudo, o público em geral e, em última instância, a própria sociedade no seu todo – pois sem liberdade de leitura é a própria democracia em si mesma que é posta em risco.

Torna-se, pois, urgente (re)agir contra todo o tipo de pressões e preconceitos que exijam o retirar da biblioteca daqueles livros, ou de quaisquer outros materiais, que veiculam conceitos ou ideias com os quais se discorde – partam essas pressões de autoridades governamentais, civis, religiosas ou outras. 

O livre acesso às ideias e à total liberdade de expressão são fundamentais no processo educativo e, no discurso de Usherwood: “A questão da liberdade intelectual é central para o princípio e prática das bibliotecas públicas – na realidade de todas as bibliotecas”.

Do mesmo modo, expressa-se o Manifesto da Biblioteca Escolar da IFLA (Associação Internacional de Associações de Bibliotecários e Bibliotecas)/UNESCO referindo que:

 

O acesso aos serviços e fundos documentais deve orientar-se pela Declaração Universal dos Direitos e Liberdades do Homem, aprovada pelas Nações Unidas, e não deverá ser sujeito a nenhuma forma de censura ideológica, política ou religiosa ou a pressões comerciais.

 

A biblioteca pública deverá, assim, constituir-se como um centro local de informação que facilite a todos os utilizadores toda uma gama variada de conhecimentos e informação através de uma colecção organizada e equilibrada de materiais bibliográficos, gráficos, audiovisuais ou em qualquer outro suporte, assim como através dos novos sistemas de informação e das tecnologias mais avançadas e que, simultaneamente, garanta o acesso livre e direto ao conhecimento, à informação e à cultura. Só um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação possibilitam a liberdade, a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade e de cidadãos bem informados para exercerem os seus direitos democráticos e desempenharem um papel activo na sociedade. Por isso, universalmente, os serviços das bibliotecas públicas prestam-se na base da igualdade de acesso a todas as pessoas, sem ter em conta a idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou educação social e sem pressupor qualquer forma de censura ideológica, política ou religiosa.

Como consequência, a biblioteca deverá adquirir recursos que representem uma grande variedade de pontos de vista. A biblioteca deverá assumir os princípios da liberdade intelectual e fazer frente a qualquer tentativa de censura no âmbito dos recursos bibliográficos, procurando servir e participar na comunidade em que se insere. A biblioteca pública não pode ambicionar resolver todos os problemas da humanidade, mas deverá estar atenta a eles e tentar resolvê-los. Terá, no entanto, grande responsabilidade no que respeita a dar a conhecer e a salvaguardar a liberdade intelectual, garantindo e facilitando o acesso a todas as formas de expressão do conhecimento e da actividade intelectual, incluindo todas aquelas que alguns membros da sociedade possam considerar ofensivas, não convencionais, impopulares ou inaceitáveis. Para salvaguardar este propósito, é da exclusiva responsabilidade do bibliotecário garantir o direito à liberdade de expressão, tornando acessíveis aos utilizadores reais e potenciais da biblioteca os seus espaços, ferramentas e serviços sempre que estes o solicitarem, criando-lhes a possibilidade de estudar, garantir nova formação, ter informação e poder atuar na sociedade de uma forma diferente. O objetivo deverá ser o de formar pessoas que vão à biblioteca, que possam criticar a biblioteca mas, acima de tudo, formá-las para que possam formar e emitir um juízo crítico sobre as coisas.

Só assim a biblioteca poderá ser, nas palavras de Maria Luísa Cabral: “Um local fantástico refletindo um fluxo constante de informação, em que os livros só fazem sentido pela utilização que lhes for dada, pela circulação que lhes for autorizada, pelo próprio desgaste físico que sofrerem.

 

JMG


Referências Bibliográficas:


 CABRAL, Maria Luísa (1996). Bibliotecas acesso, sempre. Lisboa: Edições Colibri.

 

CÓDIGO DE ÉTICA PARA OS PROFISSIONAIS DE INFORMAÇÃO EM PORTUGAL [em linha]: Adapt. APDIS, BAD, INCITE.

<http://apdis.pt/download/codigo_etica.pdf> [Consulta 22 junho 2016].

 

CRAWFORD, Walt; GORMAN, Michael (1995). Future libraries: dreams, madness & reality. Chicago: American Library Association.

 

CRUZEIRO, Maria Manuela (1976). “Plano nacional de leitura”. Encontro dos Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas Portugueses: actas. Lisboa: B.A.D., p. 45-54.

 

CURRY, Ann (1996). “Censorship in libraries: a management tightrope”. Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação; N. 1 (1996), p. 37-48.

 

 

GREENHALGH, Liz; WORPOLE (1995). Libraries in a world of cultural change. London: UCL Press.

 

IFLA (2002). Diretrizes da IFLA/UNESCO para bibliotecas escolares [em linha].

<http://www.ifla.org/files/assets/school-libraries-resource-centers/publications/school-library-guidelines/school-library-guidelines-pt.pdf> [Consulta 12 maio 2016]

 

IFLA; UNESCO (1994). Manifesto da IFLA/UNESCO sobre bibliotecas públicas [em linha].

<http://archive.ifla.org/VII/s8/unesco/port.htm>[Consulta 22 junho 2016]

 

LEAL, Filipe (1998). “Bibliotecas públicas: bibliotecas para o público”. Congresso Nacional de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas: actas. Lisboa: BAD, 2. vol., p. 483-494.

 

NUNES, Henrique Barreto (1996) “Livros proibidos no regime fascista”. Da biblioteca ao leitor: estudos sobre a leitura pública em Portugal. Braga: Autores de Braga, p. 335-337.

 

ROCHA, João L. de Moraes (1198). O essencial sobre a imprensa em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

 

RODRIGUES, Graça Almeida (1980). Breve história da censura literária em Portugal. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

 

SEQUEIRA, João (1996). “Ética na informação: princípios e códigos de ética profissional”. Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação; N. 1 (1996), p. 97-131.

 

THEIS, Ann (1997). “Bibliotecários e bibliotecas”. Biblioteca; N.º 0 (1997), p. 14-19.

 

USHERWOOD, Bob (1999). “Liberdade intelectual”. A biblioteca pública como conhecimento público. Lisboa: Caminho, p. 137-151.

 

VENTURA, João (2002). Bibliotecas e esfera pública. Oeiras: Celta Editora.

 

VERGUEIRO, Waldomiro (1989). “Seleção e censura de materiais”. Desenvolvimento de colecções. São Paulo: Polis, p. 55-62.

 

VIGÁRIO, Antonieta (1996). “A decisão ética no trabalho de informação”. Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação; N. 1 (1996), p. 49-76.


Sem comentários: