(Imagem de uma estante com livros)
Quando olhamos em redor
e observamos determinadas livrarias agirem à semelhança de bibliotecas e vice‐versa,
não estaremos a assistir ao diluir de uma fronteira que até aqui parecia
claramente definida? Estarão as livrarias a ganhar terreno e a tomar o papel
natural que até aqui cumpria às bibliotecas? Poderá a sobrevivência destas estar
em causa? Terão as bibliotecas algo a aprender com as livrarias? Estarão as
bibliotecas atentas às necessidades e desafios que lhes são colocados?
O ponto de partida para
encontrar respostas a estas questões poderá ser o princípio de que a biblioteca não pode ser entendida como mero
depósito ou armazém de livros, do mesmo modo que a atual livraria não deverá
ser encarada como simples negócio de transação de livros.
Tempos houve em que as
livrarias não pareciam apreciar particularmente que se mexesse nos livros;
muito menos as bibliotecas mostravam preocupar‐se com questões de marketing
e de imagem. Hoje, constatamos que as livrarias – nomeadamente as
especializadas – possuem um espaço de auditório onde promovem debates, organizam
apresentações e lançamentos de livros, sessões de autógrafos... enfim, assumem
um papel muito mais ativo, participativo e interveniente do que o de simplesmente
venderem livros. Talvez preocupadas com a crise que enfrentam, as livrarias
perceberam que, se pretendessem sobreviver e vencer num mercado cada vez mais
competitivo e concorrencial, teriam de ir buscar e adotar algumas das técnicas
do mundo do marketing e da gestão. Mas como? Fomentando antes de mais a
promoção, o envolvimento, incutindo a própria necessidade de procura do espaço
em si mesmo, enquanto local agradável e acolhedor, onde se pode adquirir,
consultar um livro, ou simplesmente folhear uma revista ou jornal.
Numa época marcada por
tantos e constantes apelos à atenção das pessoas, não é tarefa fácil encorajar e fomentar hábitos de leitura.
E esse é precisamente o principal papel
e missão da biblioteca. Para tanto, é fundamental que esta não se feche
em si própria. É necessário que esteja atenta, que colha experiências, que as
identifique, que as selecione e que as adapte da forma que melhor sirvam os
seus propósitos. Daí a importância do domínio de técnicas de comunicação que
ajudem a sublinhar a importância e a utilidade dos serviços de uma biblioteca e
a captação de públicos. A biblioteca (em
particular a biblioteca pública) deverá
funcionar no quadro de uma lógica empreendedora, partindo dela própria a
iniciativa de captação de públicos, de utilizadores. Não existindo uma
única solução, ou uma solução à medida, haverá, porém, a possibilidade de
aprender e de melhorar observando experiências bem-sucedidas, importando e
adotando modelos que viabilizem o sucesso. E por que não importá‐los
das suas “congéneres” livrarias?
Uma das receitas do
sucesso das modernas livrarias parece passar pela localização e escolha do
modelo a seguir. A combinação megastore e centro comercial, por exemplo,
parece resultar quando se trata de ir ao encontro das necessidades e expetativas
de uma ampla diversidade de público. O vasto leque de oferta que se consegue
proporcionar e a forma apelativa como se exibem os diferentes produtos, propiciam
um envolvimento tal que induz, não só à compra, mas também a uma mais prolongada
permanência no interior do espaço comercial. A loja surge como espaço de lazer
e de entretenimento. Para este fim também concorre um período alargado de funcionamento
e uma equipa de profissionais que ciclicamente se reveza, adaptando-se às
necessidades e disponibilidade do público.
De modo similar, constata‐se que as bibliotecas de hoje
começam a adotar, a ser criadas e a funcionar à luz de conceitos modernos como
estes, em que a gestão de marketing não é fator despiciendo. Apresentam‐se
como lugares luminosos, apelativos e acolhedores, que convidam o leitor a
entrar, a circular, a demorar‐se, a descobrir e a
tomar parte das mais diversas atividades. Decidir sobre a implantação e localização de uma biblioteca implica também
conhecer os hábitos, os motivos, as necessidades e mesmo os trajetos dos seus
potenciais utilizadores, uma vez que estes irão refletir‐se na futura
utilização do espaço e nos serviços e equipamentos que aquela irá
disponibilizar.
Da situação da biblioteca – próximo de um campus universitário, de uma
zona comercial ou residencial – resultará o público que vier a acolher. No caso
das zonas interiores de um país, por exemplo, é particularmente importante que a biblioteca procure
constituir-se enquanto polo gerador de uma nova centralidade, capaz de gerar a
aproximação das pessoas com os livros, tornando‐se um lugar de
referência,
não só para quem estuda e investiga, mas também para quem apenas deseje passar
de forma útil e descontraída algum tempo livre – lendo um livro, folheando uma
revista ou jornal, escutando um disco ou visionando um filme, ou, simplesmente
usufruindo da cafetaria.
Na linha dos cafés da Belle
Époque, a moderna livraria parece herdar a tradição de espaço cultural e de
tertúlia ao promover a realização de eventos que vão desde o lançamento de
livros, passando por encontros com escritores e personalidades das mais
diferentes áreas, recitais de música e de leitura, exposições, etc. É preciso também
que esta ideia vingue no espaço da biblioteca. A aposta incide claramente numa
forte diversificação: oferta para todos
e todos os gostos. Enquanto instrumento da vida cultural a biblioteca,
nomeadamente a biblioteca pública,
revela‐se cada vez mais como mediateca; um local onde se pode ler, consultar e
requisitar livros, mas onde também é possível encontrar discos, filmes e outros
suportes de difusão de conhecimento, informação e comunicação (Internet),
de um modo geral.
Nesta lógica de
pluralidade de funções, o acolhimento e a organização interna desempenham um
papel determinante. A aposta no acolhimento é muito importante, pois as pessoas
são naturalmente cativadas pela forma como são recebidas e por ambientes
acolhedores e agradáveis. E tudo isso leva‐as a permanecerem um
maior número de horas. As livrarias, por exemplo, já o terão entendido. Mais do que preocupar‐se em estimular e
fomentar hábitos de leitura – missão principal da biblioteca – a livraria
preocupa‐se em vender e, se possível, num ambiente apelativo e acolhedor que leve
o visitante a ficar mais tempo, a demorar‐se, a sentir‐se compelido a
comprar. A
aposta numa equipa profissional, competente e treinada, atenciosa e empenhada,
que conheça bem os produtos e que, se possível, domine algumas áreas do saber,
contribui em muito para conquistar e fidelizar o cliente.
Também nas bibliotecas
tem‐se vindo a tornar cada dia mais importante o
papel desempenhado pelo bibliotecário de referência, pois este funciona como o
“cartão‐de visita” da instituição, exigindo‐se
dele um número de valências técnicas e humanas, que lhe permitam desenvolver a
grande responsabilidade de efetuar a função de charneira entre os serviços da
instituição que representa e o público. A existência dos mais variados recursos
de informação e comunicação torna imperativo a existência de profissionais de
documentação competentes e integrados, que medeiem com eficácia entre as várias
fontes e recursos de informação e as necessidades e questões específicas
levantadas pelos utilizadores. De igual modo, constata‐se
que uma livraria lucra quando dispõe de funcionários capazes de dar assistência
na escolha de livros, a aceitar encomendas por telefone, a facilitar trocas ou
devoluções. Tudo isso influi e contribui para aumentar o prestígio de uma
entidade e para, em termos globais, projetar uma imagem de qualidade. A adoção
de conceitos e técnicas de comunicação, marketing e imagem é,
claramente, um dos pontos fortes quando olhamos para as modernas livrarias.
Desde a montra ao interior tudo é pensado criteriosamente e nenhum pormenor é
deixado ao acaso.
Se as bibliotecas têm algo a colher da experiência das livrarias, do
circuito comercial, esse algo parece residir na forma como o produto é exposto,
no modo hábil e eficaz de apelar ao consumo. No exterior, montras consagradas a um
tema da atualidade, à obra de um escritor recentemente galardoado ou uma
promoção especial. No interior, balcões e escaparates exibindo de frente as
últimas novidades, placards com recortes de jornais e displays com
revistas chamando a atenção para os mais vendidos, as obras exibidas de um modo
simples e cativante (destaque dado a um assunto, a uma determinada faixa de
público, a uma reedição), sinalização abundante, estantes de fácil acesso e
leitura. É importante que as pessoas se sintam compelidas a entrar, a deambular,
a pegar e a comprar. Mais do que da quantidade, depende da forma atrativa como
os produtos são expostos, o fazer com que as pessoas se tornem frequentadoras
assíduas. Daí que se revele importante que tanto livrarias como bibliotecas procurem conhecer o(s) público(s) e as
suas preferências de leitura, nomeadamente procurem perceber as dinâmicas que o
move: “o que”, “quando” procura, e “de que modo” o prefere fazer. Aqui
cabe destacar a possibilidade de deixar ao arbítrio de cada um a possibilidade
de ser o próprio a servir‐se. O permitir o livre acesso às estantes
(prática comum nas livrarias), é também já prática seguida por muitas
bibliotecas, nomeadamente pelas bibliotecas públicas e generalistas. Não
obstante, há que considerar que nem todas as pessoas que visitam ou frequentam
uma biblioteca o fazem com propósitos claramente definidos. Umas preferem
pesquisar por assuntos e não por títulos específicos, outras poderão optar por
“varrer” as estantes e deixarem‐se surpreender pelo que
encontrem. O sucesso desta prática depende não só de uma adequada planificação
e organização do espaço, mas também do tipo de estantes e balcões utilizados,
do número e dimensão das prateleiras, do uso de bancos e de material de sinalização
apropriado, do estilo, da cor e da ergonomia do mobiliário selecionado. Da conjugação
destes e de outros elementos resultará o tipo de ambiente criado e deste dependerá
a reação do visitante.
No modo como as
modernas livrarias constroem e gerem o seu espaço facilmente se detetam
analogias com diferentes práticas comerciais – zonas abertas e arejadas, intercalas
por “pequenas ruas e travessas” por onde as pessoas circulam livremente e descobrem
por elas próprias. A disposição dos livros – nomeadamente tratando‐se
de novidades – é, normalmente, feita de forma altamente sugestiva e apelativa, sempre
que possível exibindo a capa, deixando esta “constantemente a falar”. Outra
técnica muito adotada é a de colocar os destaques junto à área de entrada,
local igualmente estratégico para a exibição de periódicos, tais como revistas
e jornais.
A arrumação dos livros
é da maior importância. Ao contrário do que é prática comum em muitas
bibliotecas, onde não raro impera a tradicional e algo controversa Classificação
Decimal Universal, as livrarias optam por “sistemas de classificação” muito
básicos. Nestas, é muito comum encontrar as obras arrumadas por grandes rubricas,
por categorias, como por exemplo: Arte, História, Literatura, Ciências Sociais e,
dentro destas, em divisões, por subclasses; por hipótese,
“Arte” desdobrando‐se em: Arquitetura, Pintura, Fotografia,
Cinema... ou, ainda, noutro exemplo, “História” em: Medieval, Moderna,
Contemporânea, de Portugal, universal, etc. Esta ordem das coisas não parece
impedir quem procura de encontrar o que pretende. As livrarias, porventura por
adotarem sistemas mais simplificados do que a generalidade das bibliotecas,
encorajam muito o chamado “browsing”, o “self‐service”, o livre
acesso que confere às pessoas inteira liberdade de percorrerem estantes e balcões
sem constrangimentos de qualquer espécie e terem o gosto de descobrir por si próprias.
A localização e a arrumação das obras nas prateleiras é também um fator determinante,
pois está comprovado que a prateleira inferior, por exemplo, é particularmente
esquecida e que uma disposição das obras com as lombadas alinhadas na mesma
direção facilita e estimula a pesquisa. Em conclusão, parece evidente que
livrarias e bibliotecas não são realidades tão afastadas e que, embora
prosseguindo fins e objetivos diferentes, dada a sua natureza, partilharão,
ainda assim, uma espécie de prática comum que as aproxima. Hoje em dia, conforme
referido e sublinhado, o domínio de técnicas de marketing e de comunicação,
de gestão de vendas, de publicidade, revela‐se fundamental quando está
em causa a captação de público(s). E este é, ou deverá ser, “o” objetivo perseguido
tanto por livrarias quanto por bibliotecas. Estas últimas, nomeadamente, poderão
retirar importantes benefícios se estiverem atentas a determinadas práticas e experiências
e procurarem conhecer o que se passa no circuito comercial livreiro. No entanto,
há que ter o cuidado de não resvalar em excessos e ir demasiado longe ao procurar
estabelecer o modelo, ou o conceito, de uma “biblioteca organizada como uma
livraria”. A biblioteca poderá e deverá
apresentar‐se como um local cativante, acolhedor, mas nunca perdendo a referência de
que é acima de tudo um local de investigação, de estudo, de trabalho. Ainda que se encontrem
paralelismos que permitem identificar, importar e adaptar determinadas
técnicas, conceitos, ideias e experiências a que as livrarias recorrem para o
domínio das bibliotecas, há que não perder de vista que uma biblioteca não é na
sua essência um negócio, do mesmo modo que uma livraria não (sobre)vive
facultando documentos para empréstimo e respondendo a dúvidas e questões de
clientes. Ainda que ambas se constituam
como entidades dinâmicas e intervenientes dentro dessa grande esfera que é o
mercado ou mundo da cultura, cada qual prossegue um fim e uma missão diferente.
A razão ou o objetivo último da existência da biblioteca não é o de
gerar lucro, receita. Neste particular aspeto não entra em competição direta
com outros intervenientes. Independentemente do número de visitas que registe, o papel primordial da biblioteca é o de encorajar
e fomentar hábitos de leitura em todos os grupos e faixas etárias.
Todavia, enquanto parte integrante de uma sociedade em rápida e constante mudança,
é natural que nela se reflitam todo o tipo de pressões e mutações que naquela
ocorrem. Nesta medida é importante e fundamental que a biblioteca colha experiências,
que as avalie, pondere e as adapte da forma mais adequada às suas conveniências
e circunstâncias, com o fim último de servir os propósitos da sua existência: ir ao encontro do, e servir, o público em
geral.
JMG
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