2011/08/24

Um Manual Escolar Ilustrado: o livro enquanto objecto museológico

A Secretaria-Geral tem à sua guarda diversos fundos documentais que – quer pela natureza, especificidade, ou proveniência – assumem contornos próprios que conduzem à sua “autonomia”. Este património é tecnicamente tratado dentro de uma lógica integrada, reconhecendo e valorizando as idiossincrasias subjacentes a cada coleção mas perspetivando a sua importância.

Os manuais escolares – pela sua natureza e tipologia – constituem uma coleção autónoma e permitem múltiplos olhares e hipóteses de estudo. Uma possível abordagem poderá ser feita olhando ao amplo universo de desenhos e gravuras que caracterizam os livros de cariz didático do denominado período do Estado Novo, em cuja coleção se encontram inúmeros exemplares.

 As imagens que acompanham o presente texto foram retiradas do livro intitulado: “Leituras”.

Dirigido ao Ensino Técnico, composto por dois volumes e realizado por Virgílio Couto, deve a ilustração da capa ao artista de exceção que foi, e é, Almada Negreiros. As ilustrações dos cadernos que o compõem devem-se a outros tantos nomes que, igualmente, se vieram a afirmar no campo das artes gráficas e plásticas em Portugal: Marialmira; Portugal de Lacerda; Pedro Jorge Pinto; Machado da Luz; Rodrigues Neves; Júlio Gil e Fernando Bento.

 

(Imagem a preto e branco de três naus portuguesas)

Datando da década de 1950, o presente exemplar constitui a 4.ª edição da obra. Proporcionando uma série vasta de ilustrações, muito ao sabor da época, marca a narrativa de alguns textos com o curioso recurso ao estilo “banda desenhada” (ver: “Uma Aventura de Fernão Mendes Pinto” ou “De Angola à Contra-Costa – a viagem de Capelo e Ivens”). Estas imagens, muito provavelmente (a maioria dos desenhos que ilustram a obra não se encontram assinados), dever-se-ão a Fernando Bento que tendo iniciado o seu trabalho na década de 30 no teatro de revista fazendo cartazes, cenários e figurinos, passou pela publicidade antes de, em 1938, se ter iniciado na banda desenhada no suplemento infantil do jornal República. Trajeto similar ao de Almada Negreiros, escritor e artista plástico sobejamente conhecido, um dos artistas mais vezes presente em capas e ilustrações, também ele responsável pelo grafismo de muitos livros e autor de cenários e figurinos de peças de teatro.

Podemos interpretar a narrativa ilustrada representando personagens históricas – quase sempre grandes vultos da História Portuguesa (casos de: Luís de Camões, Serpa Pinto, D. João II, Nuno Álvares Pereira) – como uma forma de despertar a curiosidade e o interesse dos alunos para o tema, podendo simultaneamente servir de meio para o professor fomentar o interesse e a motivação para a observação e compreensão de determinado facto ou fenómeno.

Em todo o caso, é notória a preocupação dada nesta época à ilustração e ao design enquanto veículo capaz de fazer passar a mensagem política associada ao regime vigente. A ilustração permite visualizar e reforçar o assunto, conduzindo a uma mais rápida apreensão e elucidação do texto. Durante todo o período da ditadura, prevalece a preocupação da formação da criança enquanto “bom cidadão”. Veja-se, a título de exemplo, os textos e respetivas imagens que abrem o livro em questão: “Exortação à Mocidade” ou “Portugal – Destino Imperial.” São características muito comuns numa altura em que a recriação da “História Pátria” passa pela valorização do passado glorioso de Portugal (tema recorrente é o dos Descobrimentos e a subsequente associação do regime a este) e da sua suposta missão civilizadora e evangelizadora. Privilegiavam-se as narrativas biográficas e heroicas de grandes personalidades modelo, pretendendo-se fazer reviver, a um mesmo tempo, as tradições populares portuguesas, o folclore e as glórias do passado.


(Desenho a preto e branco representando Fernão Mendes Pinto a bordo de um navio, oferecendo-se para embarcar)


Constata-se como em livros dirigidos para o ensino, nesta época, há uma tão grande preocupação na ilustração e na composição gráfica. Tal facto denota uma séria preocupação em articular texto e imagem. Mais do que facilitar e veicular o conteúdo e compreensão do texto literário, pretendia-se passar a mensagem dos novos valores nacionalistas e autoritários de um “Estado Forte”. No caso dos mais jovens, o recurso à ilustração pode funcionar como um poderoso meio para despertar e promover a aprendizagem. Além do mais, permite ainda descodificar algum do conteúdo quando ainda não se possui inteiro domínio sobre a palavra escrita.

No que respeita, em concreto, às ilustrações que encontramos ao longo deste volume de “Leituras”, são todas elas a preto e branco, exibindo um traço fino e meticuloso, evidenciando grande detalhe e carregando enorme expressividade. Não há efeitos de cor. Toda a força do texto é veiculada pela força do traço e do desenho. Por vezes, surge-nos apenas uma pequena e discreta figura a dar entrada ou a pontuar o final da narrativa (“A Pomba e a Formiga”; “O Sapateiro Pobre”; “O Leão e o Rato”; “Verdade Premiada”). Nos livros dirigidos à aprendizagem de crianças e jovens é vulgar encontrarem-se textos onde se celebram as virtudes da humildade e do conformismo, da obediência e do sacrifício. O imperioso cumprimento do dever, o amor ao trabalho e à Pátria, eram ideias muito bem sublinhadas nos manuais escolares da época.


(Imagem de vários filiados da Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina, caminhando em direção ao Sol. Abaixo encontra-se a "Exortação à Mocidade)


Os nomes que encontramos por detrás das ilustrações de “Leituras” seguiram todos com assinalável sucesso a carreira das artes, nomeadamente destacando-se na sua carreira profissional enquanto pintores e professores (Escola Superior de Belas Artes de Lisboa; Sociedade Nacional de Belas Artes ou Escola de Artes Decorativas António Arroio), e colaborando, pontualmente, ao longo da vida como aguarelistas e desenhadores de diversas obras de índole literária.


JMG


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

BARREIRA, Cecília – Nacionalismo e Modernismo, de Homem Cristo Filho e Almada Negreiros, ed. Assírio e Alvim, Lisboa, 1981.

GONÇALVES, Rui Mário – Pintura e escultura em Portugal 1940-1980, Instituto de Alta Cultura e Língua Portuguesa, MEC, Lisboa, 1980.

MARQUES, A.H. de Oliveira – História de Portugal, vol. 3.º, 2.ª ed., Palas, Lisboa, 1981.

PORTELA, Artur – Salazarismo e artes plásticas, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, MEU, Lisboa, 1982.

Portugal contemporâneo – Direção de António Reis, vol. 4.º, ed. Alfa, Lisboa, 1990.

http://sibme.sg.min-edu.pt/ipac20/ipac.jsp?session=1W14K25D23900.388634&profile=edubib&lang=por&logout=true&startover=true#focus

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