A Secretaria-Geral tem à sua guarda diversos fundos documentais que – quer pela natureza, especificidade, ou proveniência – assumem contornos próprios que conduzem à sua “autonomia”. Este património é tecnicamente tratado dentro de uma lógica integrada, reconhecendo e valorizando as idiossincrasias subjacentes a cada coleção mas perspetivando a sua importância.
Os
manuais escolares – pela sua natureza e tipologia – constituem uma coleção
autónoma e permitem múltiplos olhares e hipóteses de estudo. Uma possível
abordagem poderá ser feita olhando ao amplo universo de desenhos e gravuras que
caracterizam os livros de cariz didático do denominado período do Estado Novo,
em cuja coleção se encontram inúmeros exemplares.
As imagens que acompanham o presente texto
foram retiradas do livro intitulado: “Leituras”.
Dirigido ao Ensino Técnico, composto por dois
volumes e realizado por Virgílio Couto, deve a ilustração da capa ao artista de
exceção que foi, e é, Almada Negreiros. As ilustrações dos cadernos que o
compõem devem-se a outros tantos nomes que, igualmente, se vieram a afirmar no
campo das artes gráficas e plásticas em Portugal: Marialmira; Portugal de
Lacerda; Pedro Jorge Pinto; Machado da Luz; Rodrigues Neves; Júlio Gil e
Fernando Bento.
Datando
da década de 1950, o presente exemplar constitui a 4.ª edição da obra.
Proporcionando uma série vasta de ilustrações, muito ao sabor da época, marca a
narrativa de alguns textos com o curioso recurso ao estilo “banda desenhada”
(ver: “Uma Aventura de Fernão Mendes Pinto” ou “De Angola à Contra-Costa – a
viagem de Capelo e Ivens”). Estas imagens, muito provavelmente (a maioria dos
desenhos que ilustram a obra não se encontram assinados), dever-se-ão a
Fernando Bento que tendo iniciado o seu trabalho na década de 30 no teatro de
revista fazendo cartazes, cenários e figurinos, passou pela publicidade antes
de, em 1938, se ter iniciado na banda desenhada no suplemento infantil do
jornal República. Trajeto similar ao
de Almada Negreiros, escritor e artista plástico sobejamente conhecido, um dos
artistas mais vezes presente em capas e ilustrações, também ele responsável
pelo grafismo de muitos livros e autor de cenários e figurinos de peças de
teatro.
Podemos
interpretar a narrativa ilustrada representando personagens históricas – quase
sempre grandes vultos da História Portuguesa (casos de: Luís de Camões, Serpa
Pinto, D. João II, Nuno Álvares Pereira) – como uma forma de despertar a
curiosidade e o interesse dos alunos para o tema, podendo simultaneamente
servir de meio para o professor fomentar o interesse e a motivação para a
observação e compreensão de determinado facto ou fenómeno.
Em todo
o caso, é notória a preocupação dada nesta época à ilustração e ao design enquanto veículo capaz de fazer
passar a mensagem política associada ao regime vigente. A ilustração permite
visualizar e reforçar o assunto, conduzindo a uma mais rápida apreensão e
elucidação do texto. Durante todo o período da ditadura, prevalece a
preocupação da formação da criança enquanto “bom cidadão”. Veja-se, a título de
exemplo, os textos e respetivas imagens que abrem o livro em questão:
“Exortação à Mocidade” ou “Portugal – Destino Imperial.” São características
muito comuns numa altura em que a recriação da “História Pátria” passa pela
valorização do passado glorioso de Portugal (tema recorrente é o dos
Descobrimentos e a subsequente associação do regime a este) e da sua suposta
missão civilizadora e evangelizadora. Privilegiavam-se as narrativas
biográficas e heroicas de grandes personalidades modelo, pretendendo-se fazer
reviver, a um mesmo tempo, as tradições populares portuguesas, o folclore e as
glórias do passado.
Constata-se
como em livros dirigidos para o ensino, nesta época, há uma tão grande
preocupação na ilustração e na composição gráfica. Tal facto denota uma séria
preocupação em articular texto e imagem. Mais do que facilitar e veicular o
conteúdo e compreensão do texto literário, pretendia-se passar a mensagem dos
novos valores nacionalistas e autoritários de um “Estado Forte”. No caso dos
mais jovens, o recurso à ilustração pode funcionar como um poderoso meio para
despertar e promover a aprendizagem. Além do mais, permite ainda descodificar
algum do conteúdo quando ainda não se possui inteiro domínio sobre a palavra
escrita.
No que
respeita, em concreto, às ilustrações que encontramos ao longo deste volume de
“Leituras”, são todas elas a preto e branco, exibindo um traço fino e
meticuloso, evidenciando grande detalhe e carregando enorme expressividade. Não
há efeitos de cor. Toda a força do texto é veiculada pela força do traço e do
desenho. Por vezes, surge-nos apenas uma pequena e discreta figura a dar entrada
ou a pontuar o final da narrativa (“A Pomba e a Formiga”; “O Sapateiro Pobre”;
“O Leão e o Rato”; “Verdade Premiada”). Nos livros dirigidos à aprendizagem de
crianças e jovens é vulgar encontrarem-se textos onde se celebram as virtudes
da humildade e do conformismo, da obediência e do sacrifício. O imperioso
cumprimento do dever, o amor ao trabalho e à Pátria, eram ideias muito bem
sublinhadas nos manuais escolares da época.
Os
nomes que encontramos por detrás das ilustrações de “Leituras” seguiram todos
com assinalável sucesso a carreira das artes, nomeadamente destacando-se na sua
carreira profissional enquanto pintores e professores (Escola Superior de Belas
Artes de Lisboa; Sociedade Nacional de Belas Artes ou Escola de Artes
Decorativas António Arroio), e colaborando, pontualmente, ao longo da vida como
aguarelistas e desenhadores de diversas obras de índole literária.
JMG
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BARREIRA,
Cecília – Nacionalismo e Modernismo, de
Homem Cristo Filho e Almada Negreiros, ed. Assírio e Alvim, Lisboa, 1981.
GONÇALVES,
Rui Mário – Pintura e escultura em
Portugal 1940-1980, Instituto de Alta Cultura e Língua Portuguesa, MEC,
Lisboa, 1980.
MARQUES,
A.H. de Oliveira – História de Portugal,
vol. 3.º, 2.ª ed., Palas, Lisboa, 1981.
PORTELA,
Artur – Salazarismo e artes plásticas,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, MEU, Lisboa, 1982.
Portugal contemporâneo – Direção de António Reis, vol. 4.º, ed. Alfa, Lisboa, 1990.
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