O uso de modelos anatómicos tem uma
longa tradição em contexto das práticas pedagógicas, não só no ensino básico e
secundário, mas também no ensino universitário. Os séculos XVIII e XIX foram os
mais significativos ao nível da produção de modelo didáticos, não só pelo
rigor científico que apresentam, mas também, pela sua função eminentemente
didática e pelo valor artístico.
Henri Reiling (Reiling, "Beter dan
de natuur", 2003) inicia o seu artigo com uma reflexão acerca da
ambiguidade do conceito de “modelo”. Para o autor, o conceito contém em si
próprio uma contradição intrínseca: como podemos considerar que uma
representação é um “modelo”, se não consegue traduzir a multiplicidade de
variáveis existentes na própria natureza que pretende representar? Embora esta
questão pudesse ser alvo de demorada reflexão, H. Reiling explica que a palavra
“modelo” tem a sua origem no século XV, ligada à arquitetura. Nesta época eram
frequentes os modelos técnicos, elaborados à escala, antes do início das
construções que representavam. Como tal, a palavra é utilizada pelo autor ao
longo da sua explanação.
Outro dos conceitos abordados por H.
Reiling diz respeito ao facto do modelo anatómico se poder substituir à própria
natureza. Isto acontece, pois, muitas vezes, os espécimes não se encontram
imediatamente disponíveis para a observação directa. Por outro lado, os materiais
utilizados na elaboração destes modelos são apropriados para uma análise
contínua, uma vez que são permanentes sem estarem sujeitos à deterioração
natural da matéria orgânica.
De seguida, é apresentada uma
tipificação dos modelos, de acordo com a relação com a realidade que pretendem
representar. Para referido autor existem os seguintes:
-
modelos técnicos – definem a
realidade, seja ela presente ou futura. Como exemplo Reiling aponta os modelos
arquitectónicos utilizados nas construções das grandes catedrais do século XV,
como já foi acima referido. Este tipo de modelos contribuiu não só para o
desenvolvimento de técnicos, mas também para a disseminação de conhecimentos,
sobretudo de princípios mecânicos;
-
modelos funcionais – imitam/
representam a realidade. Na opinião de Reiling, o modelo funcional representa
algo que, na realidade, não é assim: uma flor não é de papel, da mesma forma
que um corpo não é de cera;
-
modelos científicos – definem
pressupostos ou hipóteses, ou seja, são simulações, analogias da realidade. Não
pretendem representar a realidade tal como ela é, mas sim testar hipóteses ou
avaliar dados;
-
modelos à escala – têm propósitos
recreativos, como é o caso das locomotivas ou das casas de bonecas, cuja função
é puramente lúdica.
O objeto de análise do trabalho de H.
Reiling são as tipologias de modelos anatómicos. Fazendo uma breve resenha
histórica sobre o tema, refere a importância dos modelos anatómicos do corpo
humano, em cera, produzidos durante o século XVIII em Itália. A técnica do
trabalho em cera, teve o seu grande desenvolvimento em Florença nos ateliers de
Clemente Susini (1754-1814) e Paolo Mascagni (1755-1815). Estes modelos do
corpo humano eram acessíveis a todo o tipo de público, sob o conceito da
divulgação de conhecimentos do Iluminismo. Impressionam pela frescura, pelas
cores e pela imaculada perfeição sem traços de envelhecimento ou degradação da
matéria.
Durante o século XIX estes modelos
italianos foram copiados e utilizados para o ensino da medicina, destacando-se
nomes de grandes produtores como André Pierre Pinson (1746-1828) em França ou
Petrus Koning (1787-1834), que trabalhou para a Universidade de Utrecht.
Igualmente, Louis Auzoux (1797-1878),
médico francês, começou a sua produção de modelos anatómicos humanos de grande
precisão, em papel-machê e gesso, introduzindo uma inovação no ensino da
anatomia: os seus modelos eram desmontáveis e as diversas peças do corpo humano
podiam ser removidas e recolocadas. O Museu
Virtual da Educação (Secretaria-Geral do ex-Ministério da Educação - http://edumuseu.sg.min-edu.pt//)
conta com peças produzidos por este especialista. É o caso de alguns modelos
didácticos de partes do corpo de alguns animais como o estômago ou o coração.
Para além dos modelos anatómicos estão presentes na base de dados muitas
imagens parietais de teor esquemático e naturalista. Dizem respeito à
representação de diferentes tipos de tecidos, através de imagens aumentadas e
em corte. São imagens coloridas, sobre um fundo negro.
Podem observar-se igualmente várias
imagens de botânica, de carácter naturalista e, por vezes, com ampliação das
raízes, caule, frutos e vários aspetos das folhas.
Cerca de 1893, assistiu-se a um
revivalismo de uma técnica de moldagem do gesso que permitiu recriar a
natureza, mais conhecida como “moulage”. A sua função era documentar a
natureza, expressando a sua essência e não copiá-la. Uns dos exemplos deste
tipo de trabalho são as máscaras funerárias, captadas no momento da morte, e
utilizadas para fins artísticos, científicos ou pessoais.
No que respeita aos modelos anatómicos
de botânica, estes começaram a ser produzidos em Itália, utilizando a cera.
Destacam-se nomes como Clemente Susini, Francesco Calenzuoli (1796-1829), Luigi
Calamai (1800-1851) e Egisto Tortori (1829-1839). Leopold Trattinick tornou-se
bastante conhecido na Áustria devido aos seus modelos de cogumelos, utilizados
para ensinar a população a distinguir os comestíveis dos venenosos. Em França podem-se
referir nomes como Jean Baptiste Barla (1817-1896), que produziu modelos de
cogumelos e Louis Marc Antoine de Robillard d’Argentelle's (1777-1828), que se
especializou em modelos de cera de frutos tropicais.
Esta diversificação de especialistas científicos
conduziu ao aparecimento de modelos especiais, sobretudo a partir da segunda
metade do século XIX. Adolf Ziegler e o seu filho Friedrich Ziegler (1860-1936)
produziram modelos de cera representando de forma muito aumentada alguns
estados embrionários. Rudolf Weisker construiu modelos aumentados de parasitas
e Frič, em Praga, dedicou-se à produção em larga escala de microrganismos.
Robert e Reinhold Brendel produziram
modelos de botânica, aumentados, com uma precisão científica e uma qualidade
artística dificilmente alcançáveis. Estes modelos eram elaborados em
papel-machê, madeira, algodão, rattan, vidro, penas ou resina. Incluem
representações de plantas, algas, fungos e outros. Estes modelos, utilizados
para a prática da botânica, enfatizaram as estruturas e sistemas internos,
cortes e zonas específicas das plantas. O Museu
Virtual da Educação conta vários modelos Brendel representando secções
transversais de espécies vegetais ou modelos didácticos de diferentes tipos de
flores, desmontáveis, em base circular de madeira.
Emille Deyrolle, naturalista francês,
vendia colecções de espécimes a naturalistas amadores, bem como modelos
anatómicos para uso didáctico em escolas com nível de ensino primário e
secundário. Fundou a sua companhia em 1831, e passou para a conhecida Rue du
Bac, em Paris, em 1881. Para além dos modelos, a produção desta casa
destacou-se igualmente pela produção de imagens parietais de grande qualidade
como é o caso dos “Tableaux d'Histoire Naturelle”, da autoria de Gaston
Bonnier, presentes na colecção do Museu
Virtual da Educação. De destacar a existência de alguns modelos didáticos
para estudo e observação de diferentes fases de germinação de espécies
vegetais.
Cerca de 1880, Leopold (1822–1895) e
Rudolf Blaschka (1857 –1939) fundaram uma pequena companhia que começou por
produzir requintados modelos de flores em vidro. Incentivados pelo grande
interesse do príncipe Camille de Rohan, (1800–1892), pai e filho produziram
centenas de flores de vidro, verdadeiros tesouros da arte e provavelmente os
melhores que podemos encontrar no género. Cerca de 1863, Blaschka mudou-se com
a família para Dresden, sendo altamente recomendado. A partir de então, a
pedido de alguns clientes, começou a produzir modelos de invertebrados
marinhos, como anémonas e corais, também em vidro. Todos estes modelos eram
especialmente recomendados para o ensino.
H. Breitling realça o facto destes
modelos se basearem sobretudo em imagens disponíveis em publicações da
especialidade. Só uma pequena parte destas representações foram concebidas
através de uma observação direta dos espécimes recolhidos no seu habitat
natural. Poderão, assim, os objectos artificiais ser uma verdadeira imitação da
natureza?
De facto, se nunca se tiver contactado com
as plantas ou animais reais, não se poderá apreender a sua verdadeira natureza
através dos modelos, uma vez que a sensação táctil é indispensável. Para além
disso, a maior parte destas representações são muito aumentadas, pelo que
características essenciais como as dimensões nunca serão totalmente
apreendidas. Na verdade, não é possível compreender as variações naturais de
cada espécie, em tamanho, forma e cor. Os modelos representam uma realidade
mais adequada aos museus do que à própria vida.
Os modelos elaborados no século XIX
foram realizados com uma mestria e refinamento que refletem o espírito da
ciência deste período e, como tal, extremamente atrativos do ponto de vista
estético. Poderemos considerá-los obras de arte? Para Breitling o que está em
questão é a intenção do autor: pretenderia ele que os seus objectos fossem
decorativos ou científicos? A resposta não é simples.
Depois de Marcel Duchamp a tónica deixou
de ser colocada no conteúdo artístico de uma obra, mas no tipo de experiência
que esta evoca: qualquer objecto apresentado numa roupagem estética pode
invocar experiências artísticas e ser considerado arte. H. Breitling termina o
seu artigo afirmando que os modelos de Blaschka, à semelhança de muitos outros,
com o seu entusiasmo pela ciência e pelo amor da natureza, são filhos do seu
tempo, constituindo não só objectos de ensino, mas também objectos artísticos.
Bibliografia
Henri Reiling, "Beter dan de
natuur" in: Jan Brand & Alex de Vries (eds), NEO, pp. 221-235.
Utrecht: Centraal Museum, 2003) http://members.ziggo.nl/here/neo.html
Nick Hopwood, Embryos
in wax: models from the Ziegler studio. Cambridge etc., 2002.
James
Peto en Angie Hudson (red.), Leopold and Rudolf Blaschka. Londen etc., 2002 http://members.ziggo.nl/here/design.html
Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal
models: origins of design', Journal of Glass Studies
40 (1998), pp. 105-126.
http://members.ziggo.nl/here/jofgs.html
Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal
models: illustrations of 19th-century zoology', Scientiarum
Historia 26 (Brussels, 2000) nr. 12, pp. 131-143.
http://members.ziggo.nl/here/gewina.html
MJS
1 comentário:
Excelente artigo! Parabéns.
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