2012/01/11

“Melhor do que a natureza” – Modelos anatómicos no Museu Virtual da Educação


(ME/401638/26 - Modelo de estômago de ruminante - ME/Escola Secundária com 3º ciclo Emídio Garcia)


O uso de modelos anatómicos tem uma longa tradição em contexto das práticas pedagógicas, não só no ensino básico e secundário, mas também no ensino universitário. Os séculos XVIII e XIX foram os mais significativos ao nível da produção de modelo didáticos, não só pelo rigor científico que apresentam, mas também, pela sua função eminentemente didática e pelo valor artístico.

 

Henri Reiling (Reiling, "Beter dan de natuur", 2003) inicia o seu artigo com uma reflexão acerca da ambiguidade do conceito de “modelo”. Para o autor, o conceito contém em si próprio uma contradição intrínseca: como podemos considerar que uma representação é um “modelo”, se não consegue traduzir a multiplicidade de variáveis existentes na própria natureza que pretende representar? Embora esta questão pudesse ser alvo de demorada reflexão, H. Reiling explica que a palavra “modelo” tem a sua origem no século XV, ligada à arquitetura. Nesta época eram frequentes os modelos técnicos, elaborados à escala, antes do início das construções que representavam. Como tal, a palavra é utilizada pelo autor ao longo da sua explanação.


(ME/400129/197 – Imagem parietal de célula - ME/Escola Secundária D. Sancho II)

 

Outro dos conceitos abordados por H. Reiling diz respeito ao facto do modelo anatómico se poder substituir à própria natureza. Isto acontece, pois, muitas vezes, os espécimes não se encontram imediatamente disponíveis para a observação directa. Por outro lado, os materiais utilizados na elaboração destes modelos são apropriados para uma análise contínua, uma vez que são permanentes sem estarem sujeitos à deterioração natural da matéria orgânica.

 

(ME/401638/24 – Coração de serpente- ME/Escola Secundária com 3º ciclo Emídio Garcia)


De seguida, é apresentada uma tipificação dos modelos, de acordo com a relação com a realidade que pretendem representar. Para referido autor existem os seguintes:

            - modelos técnicos – definem a realidade, seja ela presente ou futura. Como exemplo Reiling aponta os modelos arquitectónicos utilizados nas construções das grandes catedrais do século XV, como já foi acima referido. Este tipo de modelos contribuiu não só para o desenvolvimento de técnicos, mas também para a disseminação de conhecimentos, sobretudo de princípios mecânicos;

            - modelos funcionais – imitam/ representam a realidade. Na opinião de Reiling, o modelo funcional representa algo que, na realidade, não é assim: uma flor não é de papel, da mesma forma que um corpo não é de cera;

            - modelos científicos – definem pressupostos ou hipóteses, ou seja, são simulações, analogias da realidade. Não pretendem representar a realidade tal como ela é, mas sim testar hipóteses ou avaliar dados;

            - modelos à escala – têm propósitos recreativos, como é o caso das locomotivas ou das casas de bonecas, cuja função é puramente lúdica.

 

(ME/403362/40 – Imagem parietal do corpo humano/Tecido nervoso - ME/Escola Secundária de Ermesinde)


O objeto de análise do trabalho de H. Reiling são as tipologias de modelos anatómicos. Fazendo uma breve resenha histórica sobre o tema, refere a importância dos modelos anatómicos do corpo humano, em cera, produzidos durante o século XVIII em Itália. A técnica do trabalho em cera, teve o seu grande desenvolvimento em Florença nos ateliers de Clemente Susini (1754-1814) e Paolo Mascagni (1755-1815). Estes modelos do corpo humano eram acessíveis a todo o tipo de público, sob o conceito da divulgação de conhecimentos do Iluminismo. Impressionam pela frescura, pelas cores e pela imaculada perfeição sem traços de envelhecimento ou degradação da matéria.

 

Durante o século XIX estes modelos italianos foram copiados e utilizados para o ensino da medicina, destacando-se nomes de grandes produtores como André Pierre Pinson (1746-1828) em França ou Petrus Koning (1787-1834), que trabalhou para a Universidade de Utrecht.


(ME/400439/309 – Imagem parietal de espécie vegetal/ Morangueiro - ME/Escola Secundária Sebastião e Silva)


Igualmente, Louis Auzoux (1797-1878), médico francês, começou a sua produção de modelos anatómicos humanos de grande precisão, em papel-machê e gesso, introduzindo uma inovação no ensino da anatomia: os seus modelos eram desmontáveis e as diversas peças do corpo humano podiam ser removidas e recolocadas. O Museu Virtual da Educação (Secretaria-Geral do ex-Ministério da Educação - http://edumuseu.sg.min-edu.pt//) conta com peças produzidos por este especialista. É o caso de alguns modelos didácticos de partes do corpo de alguns animais como o estômago ou o coração. Para além dos modelos anatómicos estão presentes na base de dados muitas imagens parietais de teor esquemático e naturalista. Dizem respeito à representação de diferentes tipos de tecidos, através de imagens aumentadas e em corte. São imagens coloridas, sobre um fundo negro.

 

Podem observar-se igualmente várias imagens de botânica, de carácter naturalista e, por vezes, com ampliação das raízes, caule, frutos e vários aspetos das folhas.


(ME/401109/429 – Modelo de espécie vegetal - ME/Escola Secundária de Camões)

Cerca de 1893, assistiu-se a um revivalismo de uma técnica de moldagem do gesso que permitiu recriar a natureza, mais conhecida como “moulage”. A sua função era documentar a natureza, expressando a sua essência e não copiá-la. Uns dos exemplos deste tipo de trabalho são as máscaras funerárias, captadas no momento da morte, e utilizadas para fins artísticos, científicos ou pessoais.

 

No que respeita aos modelos anatómicos de botânica, estes começaram a ser produzidos em Itália, utilizando a cera. Destacam-se nomes como Clemente Susini, Francesco Calenzuoli (1796-1829), Luigi Calamai (1800-1851) e Egisto Tortori (1829-1839). Leopold Trattinick tornou-se bastante conhecido na Áustria devido aos seus modelos de cogumelos, utilizados para ensinar a população a distinguir os comestíveis dos venenosos. Em França podem-se referir nomes como Jean Baptiste Barla (1817-1896), que produziu modelos de cogumelos e Louis Marc Antoine de Robillard d’Argentelle's (1777-1828), que se especializou em modelos de cera de frutos tropicais.


(ME/401109/377 – Dicotiledónea - ME/Escola Secundária de Camões)
 

Esta diversificação de especialistas científicos conduziu ao aparecimento de modelos especiais, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Adolf Ziegler e o seu filho Friedrich Ziegler (1860-1936) produziram modelos de cera representando de forma muito aumentada alguns estados embrionários. Rudolf Weisker construiu modelos aumentados de parasitas e Frič, em Praga, dedicou-se à produção em larga escala de microrganismos.

 

Robert e Reinhold Brendel produziram modelos de botânica, aumentados, com uma precisão científica e uma qualidade artística dificilmente alcançáveis. Estes modelos eram elaborados em papel-machê, madeira, algodão, rattan, vidro, penas ou resina. Incluem representações de plantas, algas, fungos e outros. Estes modelos, utilizados para a prática da botânica, enfatizaram as estruturas e sistemas internos, cortes e zonas específicas das plantas. O Museu Virtual da Educação conta vários modelos Brendel representando secções transversais de espécies vegetais ou modelos didácticos de diferentes tipos de flores, desmontáveis, em base circular de madeira.

 

Emille Deyrolle, naturalista francês, vendia colecções de espécimes a naturalistas amadores, bem como modelos anatómicos para uso didáctico em escolas com nível de ensino primário e secundário. Fundou a sua companhia em 1831, e passou para a conhecida Rue du Bac, em Paris, em 1881. Para além dos modelos, a produção desta casa destacou-se igualmente pela produção de imagens parietais de grande qualidade como é o caso dos “Tableaux d'Histoire Naturelle”, da autoria de Gaston Bonnier, presentes na colecção do Museu Virtual da Educação. De destacar a existência de alguns modelos didáticos para estudo e observação de diferentes fases de germinação de espécies vegetais.


(ME/403702/51 – Imagem parietal de espécie vegetal/ Flor - ME/Escola Secundária de Mirandela)
 

Cerca de 1880, Leopold (1822–1895) e Rudolf Blaschka (1857 –1939) fundaram uma pequena companhia que começou por produzir requintados modelos de flores em vidro. Incentivados pelo grande interesse do príncipe Camille de Rohan, (1800–1892), pai e filho produziram centenas de flores de vidro, verdadeiros tesouros da arte e provavelmente os melhores que podemos encontrar no género. Cerca de 1863, Blaschka mudou-se com a família para Dresden, sendo altamente recomendado. A partir de então, a pedido de alguns clientes, começou a produzir modelos de invertebrados marinhos, como anémonas e corais, também em vidro. Todos estes modelos eram especialmente recomendados para o ensino.

 

H. Breitling realça o facto destes modelos se basearem sobretudo em imagens disponíveis em publicações da especialidade. Só uma pequena parte destas representações foram concebidas através de uma observação direta dos espécimes recolhidos no seu habitat natural. Poderão, assim, os objectos artificiais ser uma verdadeira imitação da natureza?

 

De facto, se nunca se tiver contactado com as plantas ou animais reais, não se poderá apreender a sua verdadeira natureza através dos modelos, uma vez que a sensação táctil é indispensável. Para além disso, a maior parte destas representações são muito aumentadas, pelo que características essenciais como as dimensões nunca serão totalmente apreendidas. Na verdade, não é possível compreender as variações naturais de cada espécie, em tamanho, forma e cor. Os modelos representam uma realidade mais adequada aos museus do que à própria vida.


(ME/401109/360 – Aparelho auditivo - ME/Escola Secundária de Camões)


 

Os modelos elaborados no século XIX foram realizados com uma mestria e refinamento que refletem o espírito da ciência deste período e, como tal, extremamente atrativos do ponto de vista estético. Poderemos considerá-los obras de arte? Para Breitling o que está em questão é a intenção do autor: pretenderia ele que os seus objectos fossem decorativos ou científicos? A resposta não é simples.

 

Depois de Marcel Duchamp a tónica deixou de ser colocada no conteúdo artístico de uma obra, mas no tipo de experiência que esta evoca: qualquer objecto apresentado numa roupagem estética pode invocar experiências artísticas e ser considerado arte. H. Breitling termina o seu artigo afirmando que os modelos de Blaschka, à semelhança de muitos outros, com o seu entusiasmo pela ciência e pelo amor da natureza, são filhos do seu tempo, constituindo não só objectos de ensino, mas também objectos artísticos.

 

Bibliografia

 

Henri Reiling, "Beter dan de natuur" in: Jan Brand & Alex de Vries (eds), NEO, pp. 221-235. Utrecht: Centraal Museum, 2003) http://members.ziggo.nl/here/neo.html

Nick Hopwood, Embryos in wax: models from the Ziegler studio. Cambridge etc., 2002.

James Peto en Angie Hudson (red.), Leopold and Rudolf Blaschka. Londen etc., 2002 http://members.ziggo.nl/here/design.html

 

Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal models: origins of design', Journal of Glass Studies 40 (1998), pp. 105-126.

http://members.ziggo.nl/here/jofgs.html

 

Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal models: illustrations of 19th-century zoology', Scientiarum Historia 26 (Brussels, 2000) nr. 12, pp. 131-143.

http://members.ziggo.nl/here/gewina.html

 

MJS

 


1 comentário:

Luis Maria Seguro disse...

Excelente artigo! Parabéns.