Como sabemos, o livro escolar tem-se revelado,
ao longo do tempo, como um elemento tradicional de aprendizagem, como afirma
Pinto (2003:174), cujos alicerces pedagógicos representam, em si mesmo, as
vicissitudes de cada época, quer ao nível de modalidades de aprendizagem, quer
de saberes e comportamentos veiculados pelas instituições de ensino.
Neste sentido, o manual escolar é visto como um
modelo intersubjectivo de uma época e
de uma experiência cognitivas. Desta forma, os manuais
escolares não perdem a sua “vitalidade”, ao invés, inscrevem nas suas páginas
histórias de vida vivida – diremos, o manual escolar revisitado nesta perspetiva
é testemunho da psicologia-social dos povos. Convém sublinhar, desta forma, que
os manuais serão sempre uma fonte de literacia e caudal de emoções que, impreterivelmente,
tecem estruturas cognitivas, afetivas e sociais.
Para os que ainda insistem no manual escolar
como um objeto obsoleto, emergem numa
panóplia de conceitos mutantes que, a seu modo, travam o fluxo normal de
experiências escritas e vividas (i.e. questões ética e deontológicas). Mesmo
assim, esta atitude é, por excelência, uma criação intelectual: os
desmantelamentos de vivências, que têm alimentado o caminho da cultura, recriam
novos sentidos.
Os manuais escolares são, assim, um repositório
de sagezas que, a seu modo, atuam como paradigmas (estruturas cognitivas do
homem enquanto fazedor de ciência). Thomas Khun apercebeu-se de que a
ciência é caracterizada por uma desorganização
conceptual, não obstante, a adoção de paradigmas tende a reestruturar o
conhecimento – o paradigma será, por assim, uma estrutura mental que serve para
classificar o real antes de qualquer estudo ou investigação. Nesta perspetiva,
o manual integra em si elementos e estruturas metodológicas que indexam o conhecimento escolar sob
várias perspetivas.
Retomando as palavras de Khun (1979:11), a
noção de paradigma lança uma ponte entre o que se pensa ou se poderá pensar de
ciência: o saber nasce, assim, deste reencontro epistemológico atemporal. Os
manuais escolares, enquanto conhecimento sedimentado, transportam, per si,
especificações e conteúdos que abrem portas para novas teorias científicas – o
conhecimento não se cristaliza nos manuais escolares, ao invés, redefine-se.
“O
manual escolar – por vezes, quase preferindo-se a designação de livro
escolar – pode ser, no entanto, um objecto abastado ao nível da pesquisa e
das relações que estabelece, existindo diferentes personagens e modelos de
interpretação em jogo. No entanto, crê-se que se atravessa um momento
determinante para a validação da sua importância, para o detonar de novas
fórmulas de elaboração de manuais escolares, transformando-os, mais em livro
do que em guia, mais em conceito do que em preceito, aliando-se a
sua construção às tecnologias de hoje, reformulando-o no seu formato,
evitando-se, então, o risco de poder, definitivamente, virem a ser encarados
como um objecto descartável, de perfil equívoco e simplificante.” (Costa,
2010:22)
Costa (2010:22) em Da capo al coda, manualística
de Educação Musical em Portugal (1967-2004) reinterpreta a noção de manuais escolares, vendo nestes uma estrutura
paradigmática:
a.
Objeto de pesquisa;
b.
Estabelece níveis correlacionais;
c.
Permanece como livro – cria
conceitos:
d.
Assimila novas tecnologias.
O manual escolar,
assim entendido, impõe-se por si mesmo em qualquer estrutura cultural e
pedagógica. Por um lado, estes dispositivos pedagógicos são objetos de pesquisa, assim sendo,
continuam a ampliar sinergias, efeitos ativos e esforços coordenados entre os
vários subsistemas do saber científico. Por outro lado, os modelos de interpretação e consequentes níveis correlacionais provenientes dos manuais escolares, aludem a
vivências intersubjetivas – interdependência cognitiva entre o manual escolar e
o estudante. Desta perspetiva, o livro, enquanto material didático, permanece e
assimila novas tecnologias.
Como afirma Carvalho (2010:10), o conhecimento
constrói-se através da estruturação de informações que se vai adquirindo (i.e.
vivências), não obstante, a organização e estruturação do saber obedece a uma
série de pressupostos materiais. Desta feita, o manual escolar petrifica cada
momento da história factual (diacronia) através de múltiplas conceções e
práticas de ensino (sincronia).
_________________
O
manual escolar enquanto património bibliográfico é, por excelência, testemunho
da história fatual. O património bibliográfico da Biblioteca Histórica da Educação, à guarda da Secretaria-Geral do
Ministério da Educação e Ciência, apresenta uma panóplia de documentos que vão
desde o século XVIII até ao século XX. A nível patrimonial, o manual escolar é
um “objeto” eclético, ou seja, é visto como uma osmose de saberes
indispensáveis à descodificação do mundo e das vivências.
Destacam-se
dois exemplares da Biblioteca Histórica da Educação, um dois quais faz parte da
Escola Rodrigues Sampaio e o outro do Espólio António Ginestal Machado. Em
ambos os exemplares, poderiam ser muitos outros, denotamos uma perspetiva
enciclopédica do ensino:
Prosas modernas : leituras selectas para as escolas
primárias em harmonia com os
programmas das escolas primarias e normaes: (obra
enriquecida com a collaboração
inédita de muitos escriptores contemporaneos). 1885
§ Biblioteca Histórica da Educação – Escola Rodrigues Sampaio – Cota ERS 1224
Curso de Geographia physica e política. 1910
§ Biblioteca Histórica da Educação – Espólio António Ginestal Machado – Cota AGM
54
As
grandes convulsões político-sociais foram decisivas para o aparecimento de
novas mudanças no ato de ensinar e conceptualizar o conhecimento. Com o advento
da década de 20 do século passado, a filosofia da Escola Nova e suas consequentes
interpretações americanas, francesas, alemãs, italianas, etc. não foram alheias
aos educadores portugueses.
Nesta
época, os manuais escolares portugueses são fortemente influenciados por
didáticas importadas em que os princípios pedagógicos valorizam tanto o
educador como o educando (espécie de revolução coperniciana).
Assim,
o manual não é mais uma enciclopédia dogmática, ao invés, abre rasgos a novas
fontes de informação e difusão de informação (a própria sociedade está em
construção). Não obstante, a primeira metade do século XX em Portugal é
fortemente marcada por sucessivas repressões culturais donde os próprios
manuais escolares são o rosto impresso dessas vivências.
Por
exemplo:
Aprovado oficialmente como livro único D.G., n.º 126, II
Série de 29 de Maio de 1957
§ Biblioteca Histórica da Educação – Biblioteca
e Museu do Ensino Primário – Cota BMEP MAN 2157
Aprovado oficialmente como livro único (D.G.,
2.ª série, n. 147 de 25 de Junho de 1960)
§ Biblioteca Histórica da Educação – Fundo
geral – Cota FG 334
Aprovado oficialmente, segundo os
programas de 26 de Setembro de 1919
§ Biblioteca Histórica da Educação – Escola
Rodrigues Sampaio – Cota ERS 1072-1
Como
verificamos, o tratamento documental levada o cabo pelos profissionais de
informação da Direção de Serviços de Documentação e de Arquivo e os elementos catalográficos
são, a seu modo, marcas de vivências imputadas à própria documentação (como
verificamos em alguns fundos documentais da Biblioteca Histórica da Educação).
Sabemos
que a abordagem a partir da biblioteconomia, ainda que exaustiva e com grande
instrumentalização material, não responde todavia aos desafios de uma
historiografia do livro, como afirma Magalhães (2006:11). Não obstante,
reconstrói uma visão organizada sobre do mundo que o aluno coabita. Desta
forma, o manual escolar trespassa o domínio escolar, ganha em si mesmo uma
dimensão antropológica – saber multifacetado, organizado e controlado.
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PM
Ao nível do
senso comum, poderemos entender a intersubjetividade como uma condição de vida
social que permite a partilha de sentidos, experiências e conhecimentos entre
sujeitos cognitivos. Este conceito está estreitamente implicado com a questão
de saber como é que nós resolvemos as nossas diferenças, ultrapassamos os
nossos pensamentos pessoais e partilhamos as nossas subjetividades com o outro.
“A emergência de novas teorias é geralmente
precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a
destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e
técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada
pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os
resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma
busca de novas regras.” (Kuhn, 1996:95)
Thomas Kuhn (1922-1996), epistemólogo que mudou a noção de
progresso científico. Na obra A estrutura das revoluções científicas (1962)
defendeu que os grandes progressos da ciência não resultam de mecanismos de
continuidade, mas sim de mecanismos de rotura. Segundo este estudioso é
necessário redescobrir o mundo, este devia ser olhado de outra maneira - às
diversas formas de ver o mundo, Kuhn chamou paradigmas. Quando alguém descobre
um paradigma distinto, sobre o qual é possível basear o desenvolvimento duma
ciência, diz-se que a ciência é, durante esse período, uma ciência
revolucionária.
Atualmente é muito divulgada a ideia de que a completude advém da
correlação existencial, ou seja, não somos incompletos por que sem o outro não
existimos: é desprovido de sentido pensar o mundo independentemente do Homem.
Não se pensa o eu como uma quimera da mundanidade (cfr. Merleau-Ponty, 1999)
Escola Nova - movimento
de pedagogos conhecido por Escola Nova começou a delinear-se no último quartel
do século XIX, opondo-se frontalmente à Escola que apelidaram de Tradicional,
caracterizada sobretudo por um conjunto de processos educativos introduzidos na
escola nomeadamente a partir do Século XVII, tornou-se especialmente explícito
um conflito de contornos bem definidos entre dois modelos pedagógicos: um em
que o aluno é comparado a um objeto a formar por uma ação exterior a exercer
sobre ele, por referência a valores e normas ideais, outro em que se considera
que o aluno tem consigo os meios necessários para ser sujeito da sua formação.
Um
dos autores mais considerados sobre esta problemática é Kant, este considera
que não é o sujeito que, ao conhecer, descobre as leis que regem o objeto. O
objeto, contudo, quando conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o
recebe dentro do conhecimento. Dessa forma, o filósofo abre uma nova página na
história da gnosiologia que alcançaria as mais incalculáveis consequências
tanto históricas quanto teóricas.