2012/08/29

Manuais escolares - património bibliográfico



(Imagem de vários livros)

Os manuais escolares apresentam nas suas páginas a seleção, descrição, consolidação e divulgação de conteúdos científicos. Assim, estes utensílios são os grandes mediadores entre a lei e a informação. O manual tem em potência aprendizagens que a sociedade promove e reconstrói:

 

“O manual escolar desempenha uma função central no processo educativo, quer pelo seu papel de mediador entre o currículo prescrito e o currículo programado e planificado, quer pela sua função de legitimação cultural que veicula uma dada informação […].” (Viseu, 2009:3178).

 

Como sabemos, o livro escolar tem-se revelado, ao longo do tempo, como um elemento tradicional de aprendizagem, como afirma Pinto (2003:174), cujos alicerces pedagógicos representam, em si mesmo, as vicissitudes de cada época, quer ao nível de modalidades de aprendizagem, quer de saberes e comportamentos veiculados pelas instituições de ensino.

Neste sentido, o manual escolar é visto como um modelo intersubjectivo de uma época e de uma experiência cognitivas[1]. Desta forma, os manuais escolares não perdem a sua “vitalidade”, ao invés, inscrevem nas suas páginas histórias de vida vivida – diremos, o manual escolar revisitado nesta perspetiva é testemunho da psicologia-social dos povos. Convém sublinhar, desta forma, que os manuais serão sempre uma fonte de literacia e caudal de emoções que, impreterivelmente, tecem estruturas cognitivas, afetivas e sociais.

Para os que ainda insistem no manual escolar como um objeto obsoleto, emergem numa panóplia de conceitos mutantes que, a seu modo, travam o fluxo normal de experiências escritas e vividas (i.e. questões ética e deontológicas). Mesmo assim, esta atitude é, por excelência, uma criação intelectual: os desmantelamentos de vivências, que têm alimentado o caminho da cultura, recriam novos sentidos[2].

Os manuais escolares são, assim, um repositório de sagezas que, a seu modo, atuam como paradigmas (estruturas cognitivas do homem enquanto fazedor de ciência). Thomas Khun[3] apercebeu-se de que a ciência é caracterizada por uma desorganização conceptual, não obstante, a adoção de paradigmas tende a reestruturar o conhecimento – o paradigma será, por assim, uma estrutura mental que serve para classificar o real antes de qualquer estudo ou investigação. Nesta perspetiva, o manual integra em si elementos e estruturas metodológicas que indexam o conhecimento escolar sob várias perspetivas.


“Eu mesmo apresentei alhures o termo ‘paradigma’ com o propósito de destacar a dependência da pesquisa científica para com exemplos concretos, que lançam uma ponte sobre o que de outro modo seriam lacunas na especificação do conteúdo e na aplicação das teorias científicas.” (Khun, 1979:11)


Retomando as palavras de Khun (1979:11), a noção de paradigma lança uma ponte entre o que se pensa ou se poderá pensar de ciência: o saber nasce, assim, deste reencontro epistemológico atemporal. Os manuais escolares, enquanto conhecimento sedimentado, transportam, per si, especificações e conteúdos que abrem portas para novas teorias científicas – o conhecimento não se cristaliza nos manuais escolares, ao invés, redefine-se.

“O manual escolar – por vezes, quase preferindo-se a designação de livro escolar – pode ser, no entanto, um objecto abastado ao nível da pesquisa e das relações que estabelece, existindo diferentes personagens e modelos de interpretação em jogo. No entanto, crê-se que se atravessa um momento determinante para a validação da sua importância, para o detonar de novas fórmulas de elaboração de manuais escolares, transformando-os, mais em livro do que em guia, mais em conceito do que em preceito, aliando-se a sua construção às tecnologias de hoje, reformulando-o no seu formato, evitando-se, então, o risco de poder, definitivamente, virem a ser encarados como um objecto descartável, de perfil equívoco e simplificante.” (Costa, 2010:22) 


Costa (2010:22) em Da capo al coda, manualística de Educação Musical em Portugal (1967-2004) reinterpreta a noção de manuais escolares, vendo nestes uma estrutura paradigmática:

a.     Objeto de pesquisa;

b.     Estabelece níveis correlacionais;

c.     Permanece como livro – cria conceitos:

d.     Assimila novas tecnologias.

 

O manual escolar, assim entendido, impõe-se por si mesmo em qualquer estrutura cultural e pedagógica. Por um lado, estes dispositivos pedagógicos são objetos de pesquisa, assim sendo, continuam a ampliar sinergias, efeitos ativos e esforços coordenados entre os vários subsistemas do saber científico. Por outro lado, os modelos de interpretação e consequentes níveis correlacionais provenientes dos manuais escolares, aludem a vivências intersubjetivas – interdependência cognitiva entre o manual escolar e o estudante. Desta perspetiva, o livro, enquanto material didático, permanece e assimila novas tecnologias.

 

“Um manual escolar não poderá ser concebido sem que esteja assegurada A LEGITIMIDADE DO OUTRO.” (Costa, 2010:34)

 

Como afirma Costa (2010:34) na mencionada tese doutoramento, a legitimidade do manual escolar só pode ser entendida nesta correlação bivalente – eu/outro[4]. Entenda-se que o outro (i.e. investigador, aluno, etc.) move-se numa esfera vivencial (interceção de culturas). Nesta aceção, o manual escolar interpela o interlocutor (ou outro), retirando-o da sua comodidade cultural (estas análise são fecundas nas filosofias idealistas e fenomenológicas).

 

“Sabemos que o conhecimento se constrói, estruturando as informações que se vão adquirindo e que a organização formal da informação contribui para essa estruturação. Sabemos, também, como é importante a imagem, a letra, a cor, o formato e a textura do papel, quando queremos apresentar qualquer tipo de informação num livro.” (Carvalho, 2010:10)

 

Como afirma Carvalho (2010:10), o conhecimento constrói-se através da estruturação de informações que se vai adquirindo (i.e. vivências), não obstante, a organização e estruturação do saber obedece a uma série de pressupostos materiais. Desta feita, o manual escolar petrifica cada momento da história factual (diacronia) através de múltiplas conceções e práticas de ensino (sincronia).

 

                                 _________________

 

 

O manual escolar enquanto património bibliográfico é, por excelência, testemunho da história fatual. O património bibliográfico da Biblioteca Histórica da Educação, à guarda da Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência, apresenta uma panóplia de documentos que vão desde o século XVIII até ao século XX. A nível patrimonial, o manual escolar é um “objeto” eclético, ou seja, é visto como uma osmose de saberes indispensáveis à descodificação do mundo e das vivências.

Destacam-se dois exemplares da Biblioteca Histórica da Educação, um dois quais faz parte da Escola Rodrigues Sampaio e o outro do Espólio António Ginestal Machado. Em ambos os exemplares, poderiam ser muitos outros, denotamos uma perspetiva enciclopédica do ensino:

 

Prosas modernas : leituras selectas para as escolas primárias em harmonia com os

programmas das escolas primarias e normaes: (obra enriquecida com a collaboração

inédita de muitos escriptores contemporaneos). 1885

§  Biblioteca Histórica da Educação   Escola Rodrigues Sampaio – Cota ERS 1224

 

 

Curso de Geographia physica e política. 1910

§  Biblioteca Histórica da Educação   Espólio António Ginestal Machado – Cota AGM 54

 

As grandes convulsões político-sociais foram decisivas para o aparecimento de novas mudanças no ato de ensinar e conceptualizar o conhecimento. Com o advento da década de 20 do século passado, a filosofia da Escola Nova[5] e suas consequentes interpretações americanas, francesas, alemãs, italianas, etc. não foram alheias aos educadores portugueses.

Nesta época, os manuais escolares portugueses são fortemente influenciados por didáticas importadas em que os princípios pedagógicos valorizam tanto o educador como o educando (espécie de revolução coperniciana[6]).

Assim, o manual não é mais uma enciclopédia dogmática, ao invés, abre rasgos a novas fontes de informação e difusão de informação (a própria sociedade está em construção). Não obstante, a primeira metade do século XX em Portugal é fortemente marcada por sucessivas repressões culturais donde os próprios manuais escolares são o rosto impresso dessas vivências.

 

Por exemplo:

 

Aprovado oficialmente como livro único D.G., n.º 126, II Série de 29 de Maio de 1957

§  Biblioteca Histórica da Educação – Biblioteca e Museu do Ensino Primário – Cota BMEP MAN 2157

 

Aprovado oficialmente como livro único (D.G., 2.ª série, n. 147 de 25 de Junho de 1960)

§  Biblioteca Histórica da Educação – Fundo geral – Cota FG 334

 

Aprovado oficialmente, segundo os programas de 26 de Setembro de 1919

§  Biblioteca Histórica da Educação – Escola Rodrigues Sampaio – Cota ERS 1072-1

 

 

Como verificamos, o tratamento documental levada o cabo pelos profissionais de informação da Direção de Serviços de Documentação e de Arquivo e os elementos catalográficos são, a seu modo, marcas de vivências imputadas à própria documentação (como verificamos em alguns fundos documentais da Biblioteca Histórica da Educação).

Sabemos que a abordagem a partir da biblioteconomia, ainda que exaustiva e com grande instrumentalização material, não responde todavia aos desafios de uma historiografia do livro, como afirma Magalhães (2006:11). Não obstante, reconstrói uma visão organizada sobre do mundo que o aluno coabita. Desta forma, o manual escolar trespassa o domínio escolar, ganha em si mesmo uma dimensão antropológica – saber multifacetado, organizado e controlado.

 


BIBLIOGRAFIA

 

CARVALHO, Maria da Graça Serreira Pena (2010). O manual escolar como objecto de design [on-line]: Tese apresentada às Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa para a obtenção do grau de Doutor em design

<http://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/2791/1/Tese%20vol.1%20CD.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

COSTA, Fernando Monteiro da (2010). Da Capo al Coda, manualística de Educação Musical em Portugal (1967-2004): configurações, funções, organização [on-line]: Tese de doutoramento em História, Faculdade de Letras Universidade do Porto, 2010

<http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/51228/2/tesedoutfernandocosta000116641.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

KUHN, Thomas S. (1996). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva.

 

_________  (1979). Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa [on-line]: Extraído das atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, (Londres, 1965)

<http://www.estondela.pt/Biblioteca/livros/filosofia/logica_descoberta_psic_pesquisa.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

MAGALHÃES, Justino (2006). O manual escolar no quadro da história cultural, para uma historiografia do manual escolar em Portugal [on-line]:  Sísifo. Revista de Ciências da Educação; Vol. 1 (2006), p. 5-14

<http://sisifo.fpce.ul.pt/pdfs/01-Justino.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

MERLEAU-PONTY,  M. (1999). Fenomenologia da percepção (trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura). São Paulo : Martins Fontes.

 

OLIVEIRA, Anderson Rodrigo de Oliveira (2007). A revolução coperniciana na obra Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant [on-line]: Trabalho de conclusão do curso

de filosofia do Instituto de Filosofia Santo Tomás de Aquino, Seminário Diocesano de

São Carlos, 21 de Nov. de 2007

<http://br.monografias.com/trabalhos-pdf/revolucao-copernicana-razao-pura-ant.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

PANEK, Bernadette (2006). Livro de artista: uma integração entre poetas e artistas [on-line]: Anais, IV Fórum de pesquisa científica em arte, Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006

<http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais4/bernadette_panek.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

PINTO, Mariana oliveira (2003). Estatuto e função dos manuais escolares de língua portuguesa [on-line]: Revista Iberoamericana de Educación; (2003), p. 174-183

<http://www.ipv.pt/millenium/millenium28/14.pdf> [Consulta: Maio 2011]

 

QUEIRÓS, T. (2004). [Des]igualdade de Oportunidades nos Manuais Escolares de Educação Física do 2.° ciclo do Ensino Básico? Análise das ilustrações e das percepções de professores/as-estagiários/as. Dissertação de Mestrado em Ciência do Desporto - Desporto para Crianças e Jovens. Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto, Porto.

 

RIBEIRO, Ângelo (2005). A imagem da imagem da obra de arte no uso dos manuais de Educação Visual [on-line]: Tese de Mestrado Educação, Tecnologia Educativa, Julho 2005

http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/3961/1/A%20imagem%20da%20imagem%20da%20arte%20no%20uso%20dos%20manuais%20de%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20Vi.pdf > [Consulta: Maio 2011]

 

SANTO, Esmeralda Maria (2006). Os manuais escolares, a construção de saberes e a autonomia do aluno, auscultação a alunos e professores [on-line]: Revista Lusófona de Educação; Vol. 8 (2006), p. 103-115

<http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rle/n8/n8a07.pdf> [Consulta: maio 2011]

 

SARAIVA, Carlos Alberto Alexandre (2003). Evolução histórica da abordagem do eletromagnetismo e indução eletromagnética nos livros de texto para o ensino secundário. 2003. Dissertação (Mestrado)-Universidade de Aveiro, Aveiro, 2003

 

VISEU, Floriano (2009). O manual escolar na prática docente do professor de matemática [on-line]: Actas do X Congresso Internacional Galego Português de Psicopedagogia. Braga: Universidade do Minho, 2009

<http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/10095/1/o%20manual%20escolar%20na%20pr%c3%a1tica%20docente%20do%20professor%20de%20matem%c3%a1tica.pdf>  [Consulta: Maio 2011]

 

 

PM

 



[1] Ao nível do senso comum, poderemos entender a intersubjetividade como uma condição de vida social que permite a partilha de sentidos, experiências e conhecimentos entre sujeitos cognitivos. Este conceito está estreitamente implicado com a questão de saber como é que nós resolvemos as nossas diferenças, ultrapassamos os nossos pensamentos pessoais e partilhamos as nossas subjetividades com o outro.

[2] “A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras.” (Kuhn, 1996:95)

[3] Thomas Kuhn (1922-1996), epistemólogo que mudou a noção de progresso científico. Na obra A estrutura das revoluções científicas (1962) defendeu que os grandes progressos da ciência não resultam de mecanismos de continuidade, mas sim de mecanismos de rotura. Segundo este estudioso é necessário redescobrir o mundo, este devia ser olhado de outra maneira - às diversas formas de ver o mundo, Kuhn chamou paradigmas. Quando alguém descobre um paradigma distinto, sobre o qual é possível basear o desenvolvimento duma ciência, diz-se que a ciência é, durante esse período, uma ciência revolucionária.

 

[4] Atualmente é muito divulgada a ideia de que a completude advém da correlação existencial, ou seja, não somos incompletos por que sem o outro não existimos: é desprovido de sentido pensar o mundo independentemente do Homem. Não se pensa o eu como uma quimera da mundanidade (cfr. Merleau-Ponty, 1999)

[5] Escola Nova - movimento de pedagogos conhecido por Escola Nova começou a delinear-se no último quartel do século XIX, opondo-se frontalmente à Escola que apelidaram de Tradicional, caracterizada sobretudo por um conjunto de processos educativos introduzidos na escola nomeadamente a partir do Século XVII, tornou-se especialmente explícito um conflito de contornos bem definidos entre dois modelos pedagógicos: um em que o aluno é comparado a um objeto a formar por uma ação exterior a exercer sobre ele, por referência a valores e normas ideais, outro em que se considera que o aluno tem consigo os meios necessários para ser sujeito da sua formação.

[6] Um dos autores mais considerados sobre esta problemática é Kant, este considera que não é o sujeito que, ao conhecer, descobre as leis que regem o objeto. O objeto, contudo, quando conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o recebe dentro do conhecimento. Dessa forma, o filósofo abre uma nova página na história da gnosiologia que alcançaria as mais incalculáveis consequências tanto históricas quanto teóricas.

 


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