«Uma biblioteca, antes de o leitor exercer uma
escolha, é como o caldo primordial de átomos do qual toda a vida emergiu. Está
tudo ao alcance de uma pergunta: cada ideia, cada metáfora, cada história, a
identidade de cada leitor individual.»
(Alberto
Manguel, pág. 16)
A
capital do Iraque, Bagdade*, desde sempre tem desempenhado um
papel de grande relevo na vida cultural árabe, sendo o lar de escritores,
músicos e artistas de todas as áreas. Se recuarmos ao século IX e
percorrermos as artérias da atual capital do Iraque, deparamos com um
verdadeiro caldo de culturas e uma miscelânea de línguas e de ideias. Na
verdade, desde cedo, esta grande cidade
tornou-se rapidamente um centro cultural mundial, acolhendo mais de um milhão
de habitantes.
* Nota: Bagdá
ou Bagdade ou Baguedade ou Bagdad; Fonte: https://pt.wikipedia.
História e Fundação
Em meados do século IX, no coração deste
fervilhar de diversidade, foi criada a Grande Biblioteca de Bagdade, também
conhecida como Casa da Sabedoria (“Bayt al-Hikma”). Foi mandada erigir pelo segundo
califa da dinastia abássida Abu Jafar al-Mansur, ou Almançor (reinou: 754 -
775), homem de elevado intelecto e amante das artes e da ciência, sendo mais
tarde ampliada pelo seu filho Almamune (reinou: 813 - 833).
Muitos mestres eruditos muçulmanos fizeram parte deste centro
educacional, partilhando informação, ideias e cultura. Como diríamos nos tempos
de hoje, a Grande Biblioteca tornou-se um centro incubador do saber, atraindo
estudiosos e académicos de todo o mundo, todos contribuindo para o progresso e
o conhecimento do mundo. Durante a vigência de Almamune, foram construídos
observatórios e a Casa da Sabedoria tornou-se o centro de estudo das
humanidades e das ciências, agrupando a matemática, a astronomia, a medicina, a
alquimia e a química, a zoologia, a geografia e a cartografia. Partindo de
textos persas, indianos e gregos (ex.: Pitágoras, Aristóteles, Hipócrates,
Euclides), os estudiosos acumularam uma grande coleção de saber sobre o qual
desenvolveram as bases para novas descobertas. Bagdade tornou-se conhecida como
a cidade mais rica do mundo e verdadeiro centro do desenvolvimento intelectual.
«À semelhança dos seus predecessores
de Alexandria, os bibliotecários europeus procuraram Aristóteles e
encontraram-no, meticulosamente editado e anotado por eruditos muçulmanos como
Averróis e Avicena, seus principais intérpretes no Oriente e no Ocidente.
A adoção de Aristóteles pelos árabes
começa por um sonho. Certa noite do início do século IX, o califa al-Ma’mun,
filho do quase lendário Harune Arraxide, sonhou com uma conversa. O interlocutor
do califa era um homem pálido, de olhos azuis, fronte ampla e cenho franzido,
sentado num trono, como um rei. O homem (o califa reconheceu-o com a segurança
que nos assiste a todos num sonho) era Aristóteles, e as palavras secretas que
trocaram inspiraram o califa a recomendar aos eruditos da Academia de Bagdade
que consagrassem os seus esforços, dessa noite em diante, à tradução do
filósofo grego.»
(Alberto Manguel, págs. 254 - 255)
Atividade e Importância
As atividades da Biblioteca eram
muito diversas e intensas. Nesta espécie
de “academia”, tradutores, cientistas, escribas, autores, homens de letras e
escritores costumavam reunir-se no final de cada dia a fim de traduzir, ler,
escrever, debater e dialogar. O conceito de
"catálogo de biblioteca" foi introduzido na Casa da Sabedoria e noutras
bibliotecas medievais, nas quais os livros eram organizados por géneros e
categorias específicas. De referir que muitos manuscritos e livros sobre
os mais variados assuntos científicos, e em diversos idiomas, foram traduzidos
na Casa da Sabedoria. De facto, uma das facetas mais desenvolvidas pela
biblioteca foi a da tradução. Como consequência, a Casa da Sabedoria ou Casa do
Saber, para além das funções de biblioteca ganhou renome como centro de
traduções à época. Foi, mesmo, uma instituição chave no denominado “movimento
das traduções”.
O Movimento das Traduções
O “movimento de tradução” não era
apenas um projeto; era uma cruzada empreendida pelo conhecimento. Foi iniciado
pelo Califa Almamune, o responsável pela expansão da Casa da Sabedoria. Enviou
estudiosos às bibliotecas do mundo inteiro para compulsar os seus textos mais
antigos; textos que acumulavam o saber de milénios. Chegados a Bagdade, estes
textos de autoria dos mais reputados sábios e filósofos não eram apenas
traduzidos – eram lidos, vertidos para o
árabe, glosados com comentários e enriquecidos com ulteriores apontamentos.
Este acumular de ideias despoletou novas correntes filosóficas e propalou o
avanço das mais diversas disciplinas: matemática, medicina, engenharia, etc. A
Casa da Sabedoria adquiriu reputação como centro de aprendizagem e em muito
contribuiu para que Bagdade se tornasse o epicentro do mundo medieval.
Invasão e Catástrofe
Em 1258 uma calamidade atingiu a
Casa da Sabedoria. A geopolítica do Oriente e da Europa, viu-se ameaçada por um
poder militar que não encontrava paralelo: o Império Mongol e a sua imparável
vontade e poder expansionista. Bagdade, cidade onde tanta riqueza se havia
acumulado, era um alvo cobiçado. Com a chegada e o assalto dos mongóis, séculos
de tesouros e bens acumulados foram vandalizados e saqueados. Mesquitas e
palácios, tudo foi destruído e incendiado. O mesmo fim teve a Casa da
Sabedoria, meca para a comunidade mundial de estudiosos, reduzida a ruínas e
cinzas. Segundo reza a lenda, foi atirado para o rio Tigre um número tão
elevado de manuscritos que as suas águas ficaram tingidas do negro da tinta. A
destruição do edifício e dos manuscritos que continha no seu interior
representou a quase completa extinção de todo um vasto conjunto de conhecimento
acumulado. Conhecimento tão vasto e importante que poderia ter alterado de modo
radical o curso da história da humanidade. Trabalhos de investigação com
caráter único e importância sem paralelo – por exemplo nas áreas da matemática
e álgebra –, foram, simplesmente, dizimados.
Esta catástrofe significou a perda para o mundo, de um momento para o
outro, da possibilidade de grandes descobertas e avanços. A perda de obras como
a de Euclides “Elementos de Geometria”, por exemplo, não só apagou traços
fundacionais da geometria e do cálculo, como também restringiu avanços que
poderiam ter surgido mais cedo, por exemplo, na área da arquitetura. Se a Casa
da Sabedoria não tem ardido não se teriam perdido, igualmente, avanços
importantes efetuados no domínio da astronomia, há muito iniciados com
Ptolomeu.
Em conclusão, a história da Casa da Sabedoria representou o
esforço de um povo na preservação e disseminação do conhecimento; mas não só na
preservação da sua própria história, como também da história de muitas
civilizações antigas.
JMG
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:
(BIBLIOGRAFIA, WEBGRAFIA e ILUSTRAÇÕES)
BARBIER, Frédéric (2018). De
Alexandria às bibliotecas virtuais. São Paulo: EDUSP.
FÉBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean (2000). O aparecimento do livro. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
LYONS, Jonathan (2011). A
casa da sabedoria. Lisboa: Editorial Presença.
MANGUEL, Alberto (2010). Uma
história da leitura. Lisboa: Editorial Presença.
THOMPSON, James Westfall (1940). Ancient libraries. Berkeley: University of California Press.
VALLEJO, Irene (2020). O
infinito num junco. Lisboa: Bertrand Editora.
WIKIPEDIA (2025). Al-Mansur.
[em linha]. [Consult. 22.04.2025]. Disponível: https://en.wikipedia.org/wiki/Al-Mansur
WIKIPEDIA (2024). Almançor
(califa). [em linha]. [Consult. 06.05.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alman%C3%A7or_(califa)
WIKIPEDIA (2024). Bagdade.
[em linha]. [Consult. 14.05.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bagd%C3%A1
WIKIPEDIA (2024). Casa
da sabedoria. [em linha]. [Consult. 17.04.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Sabedoria
WIKIPEDIA (2023). Cerco
de Bagdá. [em linha]. [Consult. 20.05.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cerco_de_Bagd%C3%A1_%281258%29
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