A Primeira República Portuguesa (1910-26) constituiu
uma tentativa persistente de estabelecer e manter uma democracia parlamentar.
Ainda assim, muitos entendidos, tal como Wheeler (1978:865), consideram que a
República foi prejudicada pela frequente violência pública, pela instabilidade
política e, sobretudo, pela falta de continuidade administrativa.
Atendendo às vicissitudes político-sociais de então, o Decreto n.º 3.370, de 15 de setembro de 1917, estabelece que a categoria do primeiro bibliotecário seja inerente ao professor de qualquer das cadeiras do curso superior de biblioteca-arquivo. Assim sendo, o estatuto profissional de bibliotecário é reconhecido e equiparado ao de professor.
“Na verdade,
durante o período cronológico correspondente à Primeira República, vamos
assistir a um incremento notável das bibliotecas e dos arquivos, que é, por um
lado, reflexo de novas orientações político-ideológicas e, por outro, fruto da
ação de algumas personalidades como Júlio Dantas, António Ferrão e Raul
Proença, que assumem responsabilidades importantes, do ponto de vista político,
de gestão e de coordenação técnica.” (Ribeiro, 2008:22)
Como verificamos, não só o estatuto de bibliotecário
ganha folego social, mas as bibliotecas também são incrementadas de uma forma
notória, fruto de ideologias progressistas da época.
Segundo o Regulamento sobre o provimento e promoção do pessoal das bibliotecas e arquivos nacionais, nomeadamente o Decreto nº 3.076 [1], qualquer tipo de regulamentação bibliotecária executa-se em nome do interesse do Estado e, acima de tudo, para assegurar a existência de técnicos devidamente credenciados: “pessoal devidamente habilitado e que tenha prestado provas da sua competência.” O Art. n. 1, do Decreto supracitado, afirma que:
“O quadro da
Secretaria Geral das Bibliotecas e Arquivos Nacionais compõe-se de: 1 director, 1 chefe de secção de
contabilidade, 1 chefe de secção de expediente, 2 escriturários,
1 contínuo e 1 servente.” (D.G. n. 54, 1917)
Verifica-se, deste modo, que os serviços
biblioteconómicos apresentam características multidisciplinares, onde, por
conseguinte, a contabilidade (i.e., seleção e aquisições) e o expediente
(i.e., catalogação e difusão de informação) são tarefas bem definidas.
Dezasseis anos mais tarde, com a mudança da conjetura política, o cenário cultural muda radicalmente: o Decreto n. 22.116, aprovado a 13 de janeiro de 1933, declara no Art. 1 que a biblioteca tem os seguintes objetivos: “a propaganda da leitura, a vulgarização do conhecimento e a expansão da cultura científica, literária e profissional.”
Como verificamos, a terminologia — propaganda, vulgarização e expansão — alude a roturas política e culturais. Estes conceitos do Estado Novo não são propriamente biblioteconómicos, ainda assim, remete para a forma como a promoção da leitura e disseminação de informação estavam controladas. O próprio vocabulário usado é, per si, testemunho vivo desta repressão.
Insistindo ainda no ideal de bibliotecário da Primeira República - recoletores documentais [2] existe a consciencialização de que muitas coleções biblioteconómicas, provenientes de congregações religiosas até à data da proclamação da República, estavam “dispersas” por todo o país. Atendendo a este presumível problema, o Decreto n. 3.410, de 28 de setembro de 1917, vem impor metodologias e técnicas de organização biblioteconómicas:
“Convindo,
sem demora, organizar, classificar, catalogar e instalar convenientemente estas
coleções [provenientes das extintas ordens religiosas], para instrução geral do
povo e estudo de eruditos e futuros historiadores, evitando-se assim a perda e
dispersão de milhares de documentos importantes, de facto lamentável já
ocorrido em 1759, por ocasião da expulsão dos jesuítas, e em 1834, quando foram
extintas as ordens religiosas.” (Decreto n. 3.410, 1917)
Tendo em conta a citação supramencionada verifica-se
que, neste contexto específico, o papel dos bibliotecários é essencialmente (i)
a seleção documental (organizar e classificar); (ii) o tratamento
técnico (catalogar e instalar) e, por último, (iii) a disseminação
seletiva (cliente e preservar).
Atendendo ao Decreto n. 3.410 (1917) verificamos que, ao nível biblioteconómico, existiam três grandes áreas, sendo a primeira a seleção. Neste contexto, parte-se da pré-existência documental, sobretudo dos acervos provenientes de organizações religiosas extintas. O desafio biblioteconómico é, neste caso, a organização segundo a proveniência e conteúdo (problema que atualmente persiste devido à grande dispersão de coleções e reintegração de bibliotecas em fundos vários).
A segunda etapa é, por assim dizer, reservada ao tratamento
técnico – a catalogação e a instalação (i.e., gestão e
organização de coleções) foi uma das preocupações dos bibliotecários desta
época. Este elo da cadeia documental foi, como bem sabemos, o corpus de
desenvolvimento de coleções.
Ressalta-se, com alguma surpresa, a importância dada à
disseminação seletiva da informação, onde o cliente e a sua estrutura
cognitiva são equacionados na cadeia documental: “para instrução geral do povo
e estudo de eruditos e futuros historiadores, evitando-se assim a perda e
dispersão de milhares de documentos importantes […].” As técnicas documentais,
sobretudo a gestão de coleções, deverão ter um fim último – a instrução do povo
(i.e., seleção seletiva de informação) e a preservação de acervos.
Em suma, o dinamismo que caracterizou o sector
bibliotecário, nesta época, foi acima de tudo protagonizado pela Biblioteca
Nacional, na fase em que Jaime Cortesão exerceu o cargo de diretor e em que a
chefia dos Serviços Técnicos esteve entregue a Raul Proença. Permitiu delinear
e, em alguns casos, pôr em prática, projetos de grande envergadura, cuja
conceção, do ponto de vista técnico, estava perfeitamente em consonância com os
desenvolvimentos internacionais.
A visão republicana para este sector de atividade, enquadrado
no amplo campo da instrução pública foi, sem dúvida, muito fecunda em estudos,
produção de textos e promulgação de leis com vista à afirmação de uma área
considerada estratégica para o regime político em vigor. Contudo, a falta de
meios financeiros e humanos obstou a que muitas das ideias e projetos
republicanos tivessem uma concretização efetiva (Cf. Ribeiro, 2008:225).
Bibliografia:
BOLETIM OFICIAL DO MINISTÉRIO DE INSTRUÇÃO PÚBLICA
(1935). Coimbra: Imprensa da Universidade.
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