2012/01/31

"Cartilha Colonial" - Um Manual para o Império



(Três imagens, da esquerda para a direita, onde surgem representados uma nau, alguns homens levantando um padrão e uma paisagem arborizada)


CARTILHA - Compêndio de doutrina cristã • Cartinha. Livrinho para o ensino da leitura. Manual escolar, compêndio de alfabetização; era geralmente o primeiro livro que se punha nas mãos de um estudante, prática generalizada desde o século XVI até ao século XIX • Silabário • Qualquer tratado breve ou elementar de um ofício ou arte. (Faria & Pericão, 2008)

 

Cartilha Colonial, uma edição da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, do ano de 1937, integra a coleção de Manuais Escolares da Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência. Trata-se de um livro curioso que marca um período recente da nossa História. Percorrendo os textos que o compõem, estes transportam-nos para uma época que, mais do que distar cronologicamente de nós, parece bem mais longínqua quando nos atemos ao quadro de valores (sociais, morais, políticos e ideológicos) que lhe estão subjacentes.

A avaliar pela nota introdutória do autor, terá sido redigido em 1934, quando ele, Augusto Casimiro, se encontrou em Cabo Verde – Ilha de Santo Antão – e logo após a redação de Contos de Além-Mar. Da leitura da introdução intitulada “Aos Pais e aos Professores”, é-nos dado perceber que o livro se dirige “para os pequenos escolares de Portugal”, isto é, aos alunos que iniciam a escolaridade. Os textos de abertura – “Aos Rapazes de Portugal”; “A Pátria”, “Aljubarrota 1385”; “Ceuta 1415”; “A Ribeira das Naus”; “A Viagem Maravilhosa”, muito ao gosto da época, pretendem chamar a atenção sobre valores de culto da Pátria, da fundação desta, da sua importância na História e da missão de desbravar e descobrir novos mundos:

– Foi dêsse noivado da terra com as ondas que a Pátria, verdadeiramente, nasceu!

– Aljubarrota primeiro! Depois o mar e o mundo! – A descoberta do mundo! – A conquista da Terra e do Mar!

O espírito da narrativa denota a preocupação do autor em encontrar a melhor forma de “suscitar o encantado intêresse de novos horizontes, o amor às Colónias, à vida criadora que elas possibilitam melhor do que as metrópoles”.

– Queres repetir a viagem magnífica? – Queres percorrer os caminhos que, há cinco séculos, começaram a abrir as caravelas de Portugal? – Vem daí comigo!

Nas palavras do autor: “Livro para crianças, dêle propositadamente destaco quanto seja de menor atractivo para o espírito dos seus leitores. Preferirei “às notas políticas, aos quadros estatísticos, económicos e demográficos, o que é movimento, dinamismo, vida construtiva, vida heróica, maravilhoso, dramático, quadros que atráiam e prendam.”


(Capa da obra Cartilha Colonial de Augusto Casimiro)

O nome por detrás desta obra – Augusto Casimiro dos Santos, de seu nome completo – nasceu em Amarante, a 11 de Maio de 1889 e faleceu em 23 de Setembro de 1967. Frequentou os primeiros estudos e o liceu, na terra natal, tendo iniciado a sua atividade literária bastante cedo, como poeta e cronista (1906). Prosseguiu estudos superiores em Coimbra e, mais tarde, optou pela via militar, realizando o Curso de Infantaria da Escola do Exército. Combateu nas trincheiras da Flandres (1917-18) durante a Grande Guerra. Veio a ocupar diversas posições de relevo na Administração Colonial Portuguesa, em África (Angola), até ser demitido do Exército por manifestar a sua oposição ao Estado. Muitos dos seus escritos – África Nostra (1922), Alma Africana (1936), Cartilha Colonial (1937), Portugal Crioulo (1940) – refletem a sua passagem por aquelas paragens e a experiência e visão para o tipo de problemas que se colocaram à administração portuguesa no pós-guerra. Após um período de desterro em Cabo Verde, entre 1933 e 1936, foi reintegrado, após o que passou à reserva.

Sublinhe-se, ainda, a existência no final do livro de uma síntese cronológica sob o título “As grandes viagens e conquistas dos portugueses nos séculos XVI e XVII” e de um “Pequeno Glossário” de terminologia indígena.

A questão do Colonialismo, do Ultramar e da política colonial portuguesa no período do Estado Novo é um tema complexo e, não-raro, envolto em bastante polémica; não deixando, consequentemente, de estar na ordem do dia de considerável número de historiadores, estudiosos e investigadores de diferentes áreas.

Segundo reflexão do historiador Oliveira Marques, o regime Republicano, saído de 1910, continuou a encarar as “colónias” como “províncias. Apesar de tudo, terão sido postos em prática alguns princípios de autonomia política e administrativa; uma política colonial que viu o seu término com o advento da Ditadura e do Estado Novo. Um regime centralizado, semelhante ao que vigorava antes de 1914, voltou a aparecer. A Carta Orgânica do Império Colonial Português, desenvolvimento do Acto Colonial de 1930 e adaptação da Constituição às Colónias e a Reforma Administrativa Ultramarina, firmaram os rígidos princípios do Estado Novo sobre administração colonial. Surgiu a política dos assimilados que procurava trazer para a civilização europeia – segundo refere o mesmo autor – os Africanos e Timorenses não civilizados.

“(…) o império era como que o contrapeso à pequena dimensão do Portugal europeu, a afirmação do génio dum povo pobre e recatado, algo que necessitava do recurso ao sobrenatural para poder ser explicado. O império era também o cumprimento de uma missão – integrar os povos primitivos nos parâmetros da civilização ocidental, educá-los pelo trabalho, cristianizar a sua visão do sagrado. Era, finalmente, algo de que os portugueses deviam ter imensa consciência e orgulho, pelo que se exigia das mais diversas instituições um esforço concertado para fazer com que a nova ideologia imperial fosse assumida por todos os portugueses, desde a mais tenra idade.” (Serrão & Marques, 1992:372)

 A partir do final da Segunda Guerra Mundial, cresceram e multiplicaram-se as vozes críticas que se manifestavam contra o colonialismo português. Em 1961, o Estatuto dos Indígenas chegava ao fim. Dessa data em diante, todos os habitantes de Angola, Moçambique e Guiné tornavam-se plenos cidadãos de Portugal. Desapareceu, assim, a condição de assimilado. Uma doutrina federalista passou a concorrer com a doutrina integracionista, então vigente, abrindo de novo caminho para a descentralização. De qualquer modo, a experiência colonial portuguesa não resultou numa solução pacífica, bem pelo contrário.

 “(…) motivações de tipo económico, mais do que atitudes racistas, estiveram em geral por detrás das relações entre portugueses e africanos. Só em Moçambique, e nunca coerentemente, se podia encontrar um preconceito racista contra o Negro, devido à influência sul-africana e rhodesiana, apesar de todos os esforços oficiais em contrário. Exploração do trabalhador, discriminação real, conquanto ilegal, negligência no combate ao analfabetismo e outros sinais julgados típicos de um regime colonialista podiam igualmente encontrar-se na Metrópole, onde as classes chamadas inferiores eram similarmente exploradas, sujeitas a discriminação e desprezadas na sua promoção cultural. A história dos territórios ultramarinos portugueses e a política de Portugal em África no século XX têm de ser compreendidas como réplica, ampliada, da história metropolitana, com todo o seu lento desenvolvimento económico, vícios morais de estrutura e atraso cultural. É a não compreensão deste fenómeno que normalmente leva a enganos e interpretações erradas.” (Marques, 1998:541)

Retomando a figura do nosso autor, de referir que Augusto Casimiro, ligado à oposição democrática ao Estado Novo, manteve sempre, e até ao final da sua vida, grande atividade literária. Enquanto memorialista e comentarista político, foi colaborador da revista Águia, integrou o grupo que fundou a Renascença Portuguesa (1912) e aquele que, uma década depois, fundaria o Grupo da Seara Nova, publicação que dirigiu entre 1961 e 1967, de oposição ao regime político do Estado Novo.

 

(Imagem de um livro onde se pode observar uma nau portuguesa e a frase "Por mares nunca dantes navegados. Mais além! Mais além")

Além de Cartilha Colonial, a Secretaria-Geral do Ministério da Educação e Ciência reúne no seu catálogo bibliográfico outras importantes obras do autor:

·         Calvários da Flandres, 1920

·         Nas trincheiras da Flandres, 1919

·         Livro das bem- amadas, 1921

·         Naulila, 1922

·         Ilhas crioulas, 1930

·         Alma africana, 1936

·         Paisagens de África, 1938

 

 

 

FONTES E BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

 

FARIA, Maria Isabel & PERICÃO, Maria da Graça (2008) Dicionário do livro: da escrita ao livro eletrónico. Coimbra: Almedina.

MARQUES, A.H. de Oliveira (1998) História de Portugal (Volume 3). Das revoluções liberais aos nossos dias. Lisboa: Presença.

SERRÃO, Joel & MARQUES, A.H. de Oliveira (1992) Nova História de Portugal (Vol.12). Portugal e o Estado Novo (1930-1960). Lisboa: Presença.

 

Na Internet:

AMARANTE PORTAL (2010). Augusto Casimiro [on line]. Histórico e noticioso, artigos aleatórios, 19 de maio de 2010

<http://amaranteportal.net/index.php/vultos-amarantinos/augusto-casimiro> [Consulta: 28 de Dezembro de 2011]

 

BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL (2004). Depósitos, Casimiro, Augusto, 1889-1967 [on line].

<http://acpc.bn.pt/deposito_autores/d05_casimiro­_augusto.html> [Consulta: 30 de Dezembro de 2011]

 

INFOPÉDIA (s. d.). Augusto Casimiro [on line].

<http://www.infopedia.pt/$augusto-casimiro> [Consulta: 29 de Dezembro de 2011]

 

WIKIPEDIA (2010). Augusto Casimiro dos Santos [on line]. 29 de julho de 2010

<http://pt.wikipedia.org./wiki/Augusto_Casimiro_dos_Santos> [Consulta: 28 de Dezembro de 2011].

 

 

JMG

 


2012/01/16

Peça do mês de Janeiro






Painel de azulejos 


Painel de azulejos emoldurado em base de madeira. Destaca-se, ao centro, uma mulher de lenço à cabeça que segura no colo uma réplica de um moliceiro, acompanhada por uma criança. Atrás deles, surge um conjunto de três homens de chapéu de abas largas, sendo que um deles segura numa viola. Nas laterais, surgem mais dois músicos (um tocador de gaita de foles e um de tambor), enquanto o flautista está sentado no chão, virado na direção da mulher. Data do ano de 1953 e foi realizado por alunos da escola, no âmbito das Artes Visuais

O painel pertence à Escola Secundária Dr. Mário Sacramento, Aveiro, com o número de inventário ME/400970/56. A escola foi criada em 1893 como Escola de Desenho Industrial de Aveiro, com o objetivo de formar indivíduos que pudessem trabalhar na indústria de cerâmica, florescente nesta zona. Em 1898 passou a designar-se como Escola Industrial e em 1914 como Escola Industrial e Comercial, abrangendo outras áreas do ensino técnico, como é o caso da costura, talha, carpintaria, serralharia ou eletrotecnia.

Após 1974, a Escola passou a Escola Secundária n.º 1 de Aveiro. Em 2002 adotou como patrono o Dr. Mário Sacramento, que deu o nome à instituição. Mário Emílio de Morais Sacramento (19201969), médico, escritor e teorizador do movimento neorrealista, foi uma figura de grande destaque no panorama político português devido à sua oposição ao regime do Estado Novo.

A cerâmica desempenhou desde sempre um papel preponderante na região de Aveiro. Durante o século XVI esta atividade ganhou importância através do aparecimento das primeiras “fábricas” de olaria. O século XVIII marcou o desenvolvimento da cerâmica artística decorativa, sendo de destacar a Fábrica do Côjo, fundada em 1775 por João Rodrigues Branco, que implantou a cerâmica elaborada com barro branco. A partir de 1860, esta fábrica começou a produzir azulejos através de uma nova técnica de estampilhagem.

Em 1882 foi fundada a Fábrica da Fonte Nova, responsável pela produção de objetos bastante diversificados, desde a louça comum até peças de azulejaria. A necessidade constante de pessoal qualificado e artistas esteve, assim, na origem da Escola de Desenho Industrial de Aveiro. A partir de 1905 esta fábrica degradou-se e teve de competir com a nova Fábrica dos Santos Mártires, mais tarde Fábrica Aleluia, criada por antigos operários, que incentivou a produção do azulejo.

A partir de 1911 foram criadas várias fábricas em Aveiro, assistindo-se a um novo fôlego a partir da primeira guerra mundial, contribuindo para o sucesso da região na produção cerâmica nacional.

 

Bibliografia e informação adicional:


http://www.aveiro.eu/page.asp?lg=pt&pid=161

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2170.pdf

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223394764P3rXB4nf5As64EQ1.pdf

http://www.aveiro.co.pt/categoria.aspx?categoria=museus

 


Para consultar a história da Escola Secundária Dr. Mário Sacramento:

http://www.esms.edu.pt/


MJS

2012/01/11

“Melhor do que a natureza” – Modelos anatómicos no Museu Virtual da Educação


(ME/401638/26 - Modelo de estômago de ruminante - ME/Escola Secundária com 3º ciclo Emídio Garcia)


O uso de modelos anatómicos tem uma longa tradição em contexto das práticas pedagógicas, não só no ensino básico e secundário, mas também no ensino universitário. Os séculos XVIII e XIX foram os mais significativos ao nível da produção de modelo didáticos, não só pelo rigor científico que apresentam, mas também, pela sua função eminentemente didática e pelo valor artístico.

 

Henri Reiling (Reiling, "Beter dan de natuur", 2003) inicia o seu artigo com uma reflexão acerca da ambiguidade do conceito de “modelo”. Para o autor, o conceito contém em si próprio uma contradição intrínseca: como podemos considerar que uma representação é um “modelo”, se não consegue traduzir a multiplicidade de variáveis existentes na própria natureza que pretende representar? Embora esta questão pudesse ser alvo de demorada reflexão, H. Reiling explica que a palavra “modelo” tem a sua origem no século XV, ligada à arquitetura. Nesta época eram frequentes os modelos técnicos, elaborados à escala, antes do início das construções que representavam. Como tal, a palavra é utilizada pelo autor ao longo da sua explanação.


(ME/400129/197 – Imagem parietal de célula - ME/Escola Secundária D. Sancho II)

 

Outro dos conceitos abordados por H. Reiling diz respeito ao facto do modelo anatómico se poder substituir à própria natureza. Isto acontece, pois, muitas vezes, os espécimes não se encontram imediatamente disponíveis para a observação directa. Por outro lado, os materiais utilizados na elaboração destes modelos são apropriados para uma análise contínua, uma vez que são permanentes sem estarem sujeitos à deterioração natural da matéria orgânica.

 

(ME/401638/24 – Coração de serpente- ME/Escola Secundária com 3º ciclo Emídio Garcia)


De seguida, é apresentada uma tipificação dos modelos, de acordo com a relação com a realidade que pretendem representar. Para referido autor existem os seguintes:

            - modelos técnicos – definem a realidade, seja ela presente ou futura. Como exemplo Reiling aponta os modelos arquitectónicos utilizados nas construções das grandes catedrais do século XV, como já foi acima referido. Este tipo de modelos contribuiu não só para o desenvolvimento de técnicos, mas também para a disseminação de conhecimentos, sobretudo de princípios mecânicos;

            - modelos funcionais – imitam/ representam a realidade. Na opinião de Reiling, o modelo funcional representa algo que, na realidade, não é assim: uma flor não é de papel, da mesma forma que um corpo não é de cera;

            - modelos científicos – definem pressupostos ou hipóteses, ou seja, são simulações, analogias da realidade. Não pretendem representar a realidade tal como ela é, mas sim testar hipóteses ou avaliar dados;

            - modelos à escala – têm propósitos recreativos, como é o caso das locomotivas ou das casas de bonecas, cuja função é puramente lúdica.

 

(ME/403362/40 – Imagem parietal do corpo humano/Tecido nervoso - ME/Escola Secundária de Ermesinde)


O objeto de análise do trabalho de H. Reiling são as tipologias de modelos anatómicos. Fazendo uma breve resenha histórica sobre o tema, refere a importância dos modelos anatómicos do corpo humano, em cera, produzidos durante o século XVIII em Itália. A técnica do trabalho em cera, teve o seu grande desenvolvimento em Florença nos ateliers de Clemente Susini (1754-1814) e Paolo Mascagni (1755-1815). Estes modelos do corpo humano eram acessíveis a todo o tipo de público, sob o conceito da divulgação de conhecimentos do Iluminismo. Impressionam pela frescura, pelas cores e pela imaculada perfeição sem traços de envelhecimento ou degradação da matéria.

 

Durante o século XIX estes modelos italianos foram copiados e utilizados para o ensino da medicina, destacando-se nomes de grandes produtores como André Pierre Pinson (1746-1828) em França ou Petrus Koning (1787-1834), que trabalhou para a Universidade de Utrecht.


(ME/400439/309 – Imagem parietal de espécie vegetal/ Morangueiro - ME/Escola Secundária Sebastião e Silva)


Igualmente, Louis Auzoux (1797-1878), médico francês, começou a sua produção de modelos anatómicos humanos de grande precisão, em papel-machê e gesso, introduzindo uma inovação no ensino da anatomia: os seus modelos eram desmontáveis e as diversas peças do corpo humano podiam ser removidas e recolocadas. O Museu Virtual da Educação (Secretaria-Geral do ex-Ministério da Educação - http://edumuseu.sg.min-edu.pt//) conta com peças produzidos por este especialista. É o caso de alguns modelos didácticos de partes do corpo de alguns animais como o estômago ou o coração. Para além dos modelos anatómicos estão presentes na base de dados muitas imagens parietais de teor esquemático e naturalista. Dizem respeito à representação de diferentes tipos de tecidos, através de imagens aumentadas e em corte. São imagens coloridas, sobre um fundo negro.

 

Podem observar-se igualmente várias imagens de botânica, de carácter naturalista e, por vezes, com ampliação das raízes, caule, frutos e vários aspetos das folhas.


(ME/401109/429 – Modelo de espécie vegetal - ME/Escola Secundária de Camões)

Cerca de 1893, assistiu-se a um revivalismo de uma técnica de moldagem do gesso que permitiu recriar a natureza, mais conhecida como “moulage”. A sua função era documentar a natureza, expressando a sua essência e não copiá-la. Uns dos exemplos deste tipo de trabalho são as máscaras funerárias, captadas no momento da morte, e utilizadas para fins artísticos, científicos ou pessoais.

 

No que respeita aos modelos anatómicos de botânica, estes começaram a ser produzidos em Itália, utilizando a cera. Destacam-se nomes como Clemente Susini, Francesco Calenzuoli (1796-1829), Luigi Calamai (1800-1851) e Egisto Tortori (1829-1839). Leopold Trattinick tornou-se bastante conhecido na Áustria devido aos seus modelos de cogumelos, utilizados para ensinar a população a distinguir os comestíveis dos venenosos. Em França podem-se referir nomes como Jean Baptiste Barla (1817-1896), que produziu modelos de cogumelos e Louis Marc Antoine de Robillard d’Argentelle's (1777-1828), que se especializou em modelos de cera de frutos tropicais.


(ME/401109/377 – Dicotiledónea - ME/Escola Secundária de Camões)
 

Esta diversificação de especialistas científicos conduziu ao aparecimento de modelos especiais, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Adolf Ziegler e o seu filho Friedrich Ziegler (1860-1936) produziram modelos de cera representando de forma muito aumentada alguns estados embrionários. Rudolf Weisker construiu modelos aumentados de parasitas e Frič, em Praga, dedicou-se à produção em larga escala de microrganismos.

 

Robert e Reinhold Brendel produziram modelos de botânica, aumentados, com uma precisão científica e uma qualidade artística dificilmente alcançáveis. Estes modelos eram elaborados em papel-machê, madeira, algodão, rattan, vidro, penas ou resina. Incluem representações de plantas, algas, fungos e outros. Estes modelos, utilizados para a prática da botânica, enfatizaram as estruturas e sistemas internos, cortes e zonas específicas das plantas. O Museu Virtual da Educação conta vários modelos Brendel representando secções transversais de espécies vegetais ou modelos didácticos de diferentes tipos de flores, desmontáveis, em base circular de madeira.

 

Emille Deyrolle, naturalista francês, vendia colecções de espécimes a naturalistas amadores, bem como modelos anatómicos para uso didáctico em escolas com nível de ensino primário e secundário. Fundou a sua companhia em 1831, e passou para a conhecida Rue du Bac, em Paris, em 1881. Para além dos modelos, a produção desta casa destacou-se igualmente pela produção de imagens parietais de grande qualidade como é o caso dos “Tableaux d'Histoire Naturelle”, da autoria de Gaston Bonnier, presentes na colecção do Museu Virtual da Educação. De destacar a existência de alguns modelos didáticos para estudo e observação de diferentes fases de germinação de espécies vegetais.


(ME/403702/51 – Imagem parietal de espécie vegetal/ Flor - ME/Escola Secundária de Mirandela)
 

Cerca de 1880, Leopold (1822–1895) e Rudolf Blaschka (1857 –1939) fundaram uma pequena companhia que começou por produzir requintados modelos de flores em vidro. Incentivados pelo grande interesse do príncipe Camille de Rohan, (1800–1892), pai e filho produziram centenas de flores de vidro, verdadeiros tesouros da arte e provavelmente os melhores que podemos encontrar no género. Cerca de 1863, Blaschka mudou-se com a família para Dresden, sendo altamente recomendado. A partir de então, a pedido de alguns clientes, começou a produzir modelos de invertebrados marinhos, como anémonas e corais, também em vidro. Todos estes modelos eram especialmente recomendados para o ensino.

 

H. Breitling realça o facto destes modelos se basearem sobretudo em imagens disponíveis em publicações da especialidade. Só uma pequena parte destas representações foram concebidas através de uma observação direta dos espécimes recolhidos no seu habitat natural. Poderão, assim, os objectos artificiais ser uma verdadeira imitação da natureza?

 

De facto, se nunca se tiver contactado com as plantas ou animais reais, não se poderá apreender a sua verdadeira natureza através dos modelos, uma vez que a sensação táctil é indispensável. Para além disso, a maior parte destas representações são muito aumentadas, pelo que características essenciais como as dimensões nunca serão totalmente apreendidas. Na verdade, não é possível compreender as variações naturais de cada espécie, em tamanho, forma e cor. Os modelos representam uma realidade mais adequada aos museus do que à própria vida.


(ME/401109/360 – Aparelho auditivo - ME/Escola Secundária de Camões)


 

Os modelos elaborados no século XIX foram realizados com uma mestria e refinamento que refletem o espírito da ciência deste período e, como tal, extremamente atrativos do ponto de vista estético. Poderemos considerá-los obras de arte? Para Breitling o que está em questão é a intenção do autor: pretenderia ele que os seus objectos fossem decorativos ou científicos? A resposta não é simples.

 

Depois de Marcel Duchamp a tónica deixou de ser colocada no conteúdo artístico de uma obra, mas no tipo de experiência que esta evoca: qualquer objecto apresentado numa roupagem estética pode invocar experiências artísticas e ser considerado arte. H. Breitling termina o seu artigo afirmando que os modelos de Blaschka, à semelhança de muitos outros, com o seu entusiasmo pela ciência e pelo amor da natureza, são filhos do seu tempo, constituindo não só objectos de ensino, mas também objectos artísticos.

 

Bibliografia

 

Henri Reiling, "Beter dan de natuur" in: Jan Brand & Alex de Vries (eds), NEO, pp. 221-235. Utrecht: Centraal Museum, 2003) http://members.ziggo.nl/here/neo.html

Nick Hopwood, Embryos in wax: models from the Ziegler studio. Cambridge etc., 2002.

James Peto en Angie Hudson (red.), Leopold and Rudolf Blaschka. Londen etc., 2002 http://members.ziggo.nl/here/design.html

 

Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal models: origins of design', Journal of Glass Studies 40 (1998), pp. 105-126.

http://members.ziggo.nl/here/jofgs.html

 

Henri Reiling, 'The Blaschkas' glass animal models: illustrations of 19th-century zoology', Scientiarum Historia 26 (Brussels, 2000) nr. 12, pp. 131-143.

http://members.ziggo.nl/here/gewina.html

 

MJS

 


2012/01/04

UM MANUAL PARA O ENSINO DA QUÍMICA NOS FINAIS DO SÉCULO XIX


(Capa da obra Elementos de Chimica Moderna de António Xavier Corrêa Barreto, 4.ª edição, 1883)


Elementos de Chimica Moderna é um manual escolar por onde estudavam os alunos do 3º ano do ensino secundário nos finais do século XIX. O exemplar cujas páginas aqui reproduzimos, pertencente ao espólio da Biblioteca Histórica desta Secretaria-geral, é a quarta edição, datada de 1883, mas esta obra tem a sua primeira edição em 1874, conhecendo posteriormente sucessivas re-edições.

O seu autor, António Xavier Correia Barreto, foi um militar cujo percurso se confunde com a história da Primeira República. General de artilharia, fez o Curso da Escola Politécnica e da Escola de Guerra, tendo sido Ministro da Guerra (19101911; 19121913; 19221922), Presidente da Comissão administrativa Municipal de Lisboa (1913) e Deputado nas Constituintes (1911), para além de Senador (19111926), tendo presidido ao Senado e ao Congresso desde 1915 a 1926, com o interregno do sidonismo, em que esteve preso.

Figura multifacetada, Correia Barreto pode definir-se como um cientista que também foi militar e político. Toda a sua carreira militar foi sendo apoiada no prestígio enquanto cientista e, tal como escreveu um dos seus contemporâneos, Rocha Martins, a Correia Barreto “mais lhe agradava o laboratório do que o regimento”.

Na Escola Politécnica foi aluno de António Augusto de Aguiar na cadeira de «Química Mineral», tendo sido a este professor que Correia Barreto dedicou a sua primeira obra, classificando-o como “meu prezado mestre e amigo”. De facto, ainda como 1.º tenente, Correia Barreto deu ao prelo a sua primeira publicação no campo da Química, este manual escolar Elementos de Chimica Moderna. Contendo as suas principaes applicações para uso dos Lyceus (...) Aprovado pelo Governo, que terá sido o primeiro manual escolar de Química aprovado oficialmente.

 

(Retrato de António Xavier Correia Barreto no seu laboratório)

 

A elaboração deste manual escolar foi a primeira fase de um mais longo trabalho em torno da manualística, e muito especialmente em obras dedicadas ao ensino de militares. Em 1880, Correia Barreto foi nomeado para uma comissão »destinada a elaborar e indicar os livros que deveriam ser usados nas Escolas Regimentais». Quando em 1892, José Estêvão de Morais Sarmento participou no «Congresso Pedagógico Hispano PortuguêsAmericano» com uma comunicação intitulada “as Escolas Regimentais em Portugal”, são ainda largos os parágrafos que dedica aos seus “inovadores compêndios”.

Nos anos seguintes, Correia Barreto participou na colecção Biblioteca das Ideias Modernas com, pelo menos, três traduções. Nesta coleção editorial, onde se anunciaram as obras de Teófilo Braga, são de sua responsabilidade as traduções das obras A Teoria Atómica na Conceção Geral do Mundo, de Wurtz; O que é a Força, de SaintRobert; e A natureza dos elementos chimicos, de Berthelot. Neste caso, e tal como é mencionado na respectiva capa, o trabalho de Correia Barreto não é apenas de tradução mas também de redacção, sendo da sua autoria o último capítulo: «A Constituição da Matéria».

O ponto mais alto da sua carreira como cientista foi a descoberta de uma pólvora sem fumo, que surgiu como corolário da intensa carreira científica que se encontra espelhada na bibliografia. Com efeito, ainda em 1885 e como Capitão, é superiormente incumbido de estudar um novo tipo de pólvora, sem fumo, no sentido de acabar com a dependência que o nosso país tinha da pólvora inventada por Nobel em 1863.

A sua atividade como militar e político teve uma componente fundamental no campo da Educação. Logo em 1910, como Ministro da Guerra, Correia Barreto encarrega o oficial general com quem já antes trabalhara nas Escolas Regimentais, José Estêvão de Morais Sarmento, de dirigir uma Reforma das Forças Armadas onde várias questões pertinentes no campo do ensino são lançadas, especialmente a formação na escrita e na leitura aos recrutas. Para esse efeito nomeia uma Comissão, de que fizeram parte dois dos mais importantes educadores republicanos, João de Barros e João de Deus Ramos, atribuindo-lhe a elaboração de "um projeto de regulamento de instrução militar preparatória" fundando escolas primárias em todos os Regimentos, seguindo um modelo muito próximo do praticado na Suíça, que aqueles pedagogos conheciam bem.

Pouco depois, em Maio de 1911, é criado, sob sua responsabilidade política, o "Instituto Profissional dos Pupilos do Exército de Terra e Mar", mais tarde re-nomeado  Instituto de Pupilos do Exercito.  O corpo docente escolhido por Correia Barreto, mais uma vez, inclui nomes importantes do campo educativo nestas primeiras décadas do século XX, como Álvaro Viana de Lemos, o padre António de Oliveira, e João Lopes Soares, sempre enquadrados pelo labor legislativo pedido a João de Barros. Por esta altura, ainda em 1911, é criada a Sociedade Portuguesa de Química, sendo Correia Barreto um dos fundadores.

O manual de química que aqui mostramos está escrito com uma grande preocupação de clareza e acessibilidade para alunos do secundário, começando por introduzir as noções mais simples e gerais, como a própria definição de fenómenos químicos que transcrevemos a início. Prossegue, depois, com a descrição dos vários elementos químicos, dando para cada um deles uma pequena nota da história da sua «descoberta», que hoje constituem pequenas preciosidades para a História da Ciência. Para o cloro, por exemplo, Correia Barreto refere, como pode ver-se na imagem: “Foi descoberto em 1774 por Schèele que o suppoz uma combinação de acido muriatico com o oxygenio, denominando-o acido muriatico oxygenado. Em 1809 Gay-Lussac, Thenard e Davy mostraram que o chloro era um corpo simples.”

(Página 41 da obra Elementos de Chimica Moderna onde são visíveis instrumentos para a realização de experiências)


(Página 42 da obra Elementos de Chimica Moderna onde são visíveis instrumentos para a realização de experiências)

(Página 43 da obra Elementos de Chimica Moderna onde são visíveis instrumentos de vidro para a realização de experiências)


(Página 44 da obra Elementos de Chimica Moderna onde são visíveis instrumentos para a realização de experiências)




Depois das breves introduções históricas, Correia Barreto descreve, para cada elemento, o seu «Estado Natural», «Propriedades», «Preparação», e «Aplicações», como pode ver-se no capítulo dedicado ao cloro (páginas 41 a 44 do manual) que aqui reproduzimos como exemplo.

Como também pode ver-se, toda a obra recorre a desenhos que representam as operações referidas, ajudando a complementar e esclarecer as explicações teóricas.

Na segunda parte da obra, intitulada «Chimica orgânica», o autor descreve produtos mais complexos como acetonas, álcool etílico, éter, betumes, hulha ou petróleo. A respeito deste último, diz o autor: “Esta essência mineral encontra-se na Pérsia, na Índia, na Itália e na América do Norte, sendo este país o que contém os mais notáveis jazigos (Pensylvania)”. E mais adiante, a respeito das aplicações práticas destes produtos, esclarece que a principal utilização do petróleo é a produção de uns “óleos que se empregam para iluminar pela sua combustão em candeeiros próprios”. Noções que hoje nos fazem sorrir, quando pensamos na expansão que o chamado ‘ouro negro’ conheceu ao longo do século XX, quer em termos de procura e de utilização, quer de importância social e económica.

 

 

TSC