«A
Biblioteca, que também era de certa forma um farol, é, contudo, um lugar que
nenhum autor antigo nos ajuda a imaginar. Em todos os textos, permanecem
imprecisos os detalhes sobre o espaço, a distribuição de salas e pátios, as
atmosferas e os recantos, como que refletidos num espelho às escuras.»
(Irene Vallejo, pág. 70)
A
Vila dos Papiros ou Villa dei Papiri constituiu
uma residência particular da antiga cidade romana de Herculano (atual município
italiano de Ercolano). Situada a noroeste da cidade, a residência encontra-se a
meio caminho do vulcão Vesúvio. O
Vesúvio encontra-se a cerca de quinze quilómetros a sul do perímetro urbano da
Nápoles moderna, Pompeia a cerca de dez quilómetros a sul do Vesúvio e
Herculano situa-se a meio caminho entre Nápoles e Pompeia, mesmo em frente do
cone vulcânico, a cerca de seis quilómetros da cratera. As duas cidades ficaram
sepultadas sob as cinzas e a lama vulcânica ocasionadas pela erupção do vulcão
no ano 79 da nossa Era. Na realidade, tanto Pompeia como Herculano eram cidades
portuárias, mas com o avanço da lava da erupção e com o passar dos anos, ambas
se encontram agora a uma certa distância da praia.
Outrora
rica de cultura, de comércio, termas e de palácios, Herculano era um dos retiros
favoritos da corte imperial e um espaço de eleição de poetas e filósofos. Ao
que tudo indica, foi propriedade do sogro de Júlio César, Lúcio Calpúrnio Pisão
Cesonino. Lúcio Calpúrnio, um rico aristocrata eleito cônsul em 148 a.C., foi, igualmente,
um poderoso magistrado e leitor entusiasta das obras do pensamento grego.
Embora
menor que a sua vizinha Pompeia, com uma população de até cinco mil habitantes,
Herculano era uma cidade mais rica. Na verdade, constituiu-se, desde cedo, como
um refúgio à beira-mar para a elite romana, rica e poderosa, o que se reflete
na extraordinária densidade de “mansões” grandiosas e luxuosas, sendo disso
testemunho os elaborados e vistosos pisos de mármore colorido. Entre os
melhores edifícios da antiga cidade encontra-se a Vila dos Papiros. À época,
era mesmo conhecido como o mais belo dos edifícios atendendo à sua dimensão, à
magnificência e qualidade dos frescos que cobriam as suas paredes e ao estuque
trabalhado que ornava tetos, volutas e cornijas.
«As
escavações da Villa dos Papiros revelaram que os livros do sibarita Pisão
estavam guardados numa divisão de três por três metros com prateleiras nas
paredes e uma estante de madeira de cedro ao centro com três prateiras dos dois
lados. Os rolos eram transferidos para o pátio contíguo para poderem lê-los com
boa luz, entre luxuosas estátuas. Nesse design, o arquiteto da villa seguia o
precedente grego.»
(Irene Vallejo, pág. 348)
O edifício, pelas suas
características, emanava beleza e tranquilidade, para o que muito contribuía o
terreno verde e cuidado, que o rodeava, e a deslumbrante frente de mar a perder
de vista. Numa das suas muitas salas que o compunham, em armários de madeira encontrava-se
alojada uma biblioteca de rolos de papiro. Nela se reunia uma das maiores e
melhores coleções de documentos da antiguidade: obras de Epicuro e, sobretudo,
do filósofo Filodemo de Gádara, mestre de nomes como os de Virgílio, Horácio e
Cícero. Filodemo, nascido no ano de 110 a.C., na cidade de Gádara, foi um
filósofo e poeta epicurista que estudou sob a alçada de Zenão de Sídon, em
Atenas, antes de se mudar para Roma e, posteriormente, para Herculano, onde
veio a morrer, em 35 a.C. Conhecido, antes de mais, pela sua poesia preservada
na Anthologia Graeca, muitos escritos
seus foram descobertos entre os rolos (carbonizados) da Vila dos Papiros, em
Herculano.
Apesar de difíceis de decifrar, as
obras de Filodemo apresentam-se de importância extrema, pois reúnem muita
informação sobre assuntos diversos, tais como: ética, teologia, retórica,
música, poesia e a história e o pensamento de várias escolas filosóficas.
«O
rolo de papiro implicou um fantástico avanço na história do livro. Os judeus,
gregos e romanos adotaram-no com tanto entusiasmo que chegaram a considerá-lo
um traço cultural próprio. Em comparação com as tabuinhas, as folhas de papiro
são um material fino, leve e flexível e, quando se enrolam, fica armazenada uma
grande quantidade de texto em muito pouco espaço. Um rolo de dimensões
habituais podia conter uma tragédia grega completa, um diálogo breve de Platão
ou um evangelho. Isso representava um prodigioso avanço no que se refere ao
esforço para conservar as obras do pensamento e da imaginação.»
(Irene Vallejo, pág. 76)
Quando
se alude aos papiros de Herculano referem-se os mais de mil e oitocentos
papiros aí encontrados, no século XVIII, por volta de 1750, carbonizados pela
erupção do Vesúvio no ano de 79, sob o governo de Tito (imperador romano entre
os anos de 79 e 81 d.C.).
Após
várias tentativas inglórias e métodos de manipulação erróneos, encontrou-se, na
atualidade, uma forma de os “desenrolar”, que, finalmente, permitiu alguma da
sua leitura e decifração. Constatou-se que os papiros contêm vários textos
filosóficos gregos, provenientes de uma única biblioteca pessoal, associada ao
filósofo Filodemo de Gádara, identificado como o autor de quarenta e quatro
rolos.
Até meados do século XVIII, os únicos
papiros conhecidos eram alguns exemplares que haviam sobrevivido da época
medieval. Contudo, textos em grego e latim, não tinham sobrevivido, tendo-se
fragmentado ou perdido. Muitos ficaram irremediavelmente perdidos com
tentativas erróneas, ou menos conseguidas, de os tentar desenrolar.
Seja
como for, só muito mais tarde, com recurso a métodos e equipamentos científicos
avançados (uma combinação de imagens de raios-X com programas de Inteligência
artificial), a Biblioteca Nacional Italiana de Nápoles descobriu um processo,
não intrusivo e não destrutivo, que permitiu abrir digitalmente um rolo de
papiro que não era lido há dois mil anos e decifrar, pelo menos, algum do seu
conteúdo. Veio, então, a constatar-se que este riquíssimo conjunto de papiros
resgatados dos escombros, preservam textos refinados sobre os mais diversos
temas e assuntos: música, poesia, a perceção, a eloquência e a ética, mas,
também, sobre o amor, a loucura, a adulação ou a morte.
Como a cidade de Herculano se encontrava mais
próxima do Vesúvio, a sua carbonização e consequente extinção de oxigénio aconteceu
de forma mais rápida, o que levou a que o seu estado de conservação seja melhor
do que o da sua congénere a sul. Assim, em Herculano encontramos papiros,
madeira, tecidos e até alimentos que se conservaram por mais de mil e
seiscentos anos debaixo das cinzas e da lama vulcânica. Na verdade,
a Vila dos Papiros revelou, no seu interior, para além da única biblioteca
sobrevivente do mundo clássico, o mais rico museu jamais encontrado numa
residência privada: frescos, mosaicos, um grande número de estátuas de bronze
representando divindades, heróis, filósofos e poetas, testemunhos únicos de um
verdadeiro amor pela arte.
JMG
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:
(BIBLIOGRAFIA,
WEBGRAFIA e ILUSTRAÇÕES)
BARBIER, Frédéric (2018). De
Alexandria às bibliotecas virtuais. São Paulo: EDUSP.
BATTLES, Matthew (2003). A
conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil.
CASSON, Lionel (2001). Libraries
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