2025/05/01

As Bibliotecas e a História - Vila dos Papiros - Cidade de Herculano (Campânia), Itália

 

«A Biblioteca, que também era de certa forma um farol, é, contudo, um lugar que nenhum autor antigo nos ajuda a imaginar. Em todos os textos, permanecem imprecisos os detalhes sobre o espaço, a distribuição de salas e pátios, as atmosferas e os recantos, como que refletidos num espelho às escuras.»

(Irene Vallejo, pág. 70)

 

 

Vista atual da Vila dos Papiros, em Herculano.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vila_dos_Papiros

 

A Vila dos Papiros ou Villa dei Papiri constituiu uma residência particular da antiga cidade romana de Herculano (atual município italiano de Ercolano). Situada a noroeste da cidade, a residência encontra-se a meio caminho do vulcão Vesúvio. O Vesúvio encontra-se a cerca de quinze quilómetros a sul do perímetro urbano da Nápoles moderna, Pompeia a cerca de dez quilómetros a sul do Vesúvio e Herculano situa-se a meio caminho entre Nápoles e Pompeia, mesmo em frente do cone vulcânico, a cerca de seis quilómetros da cratera. As duas cidades ficaram sepultadas sob as cinzas e a lama vulcânica ocasionadas pela erupção do vulcão no ano 79 da nossa Era. Na realidade, tanto Pompeia como Herculano eram cidades portuárias, mas com o avanço da lava da erupção e com o passar dos anos, ambas se encontram agora a uma certa distância da praia.

Outrora rica de cultura, de comércio, termas e de palácios, Herculano era um dos retiros favoritos da corte imperial e um espaço de eleição de poetas e filósofos. Ao que tudo indica, foi propriedade do sogro de Júlio César, Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino. Lúcio Calpúrnio, um rico aristocrata eleito cônsul em 148 a.C., foi, igualmente, um poderoso magistrado e leitor entusiasta das obras do pensamento grego.

Embora menor que a sua vizinha Pompeia, com uma população de até cinco mil habitantes, Herculano era uma cidade mais rica. Na verdade, constituiu-se, desde cedo, como um refúgio à beira-mar para a elite romana, rica e poderosa, o que se reflete na extraordinária densidade de “mansões” grandiosas e luxuosas, sendo disso testemunho os elaborados e vistosos pisos de mármore colorido. Entre os melhores edifícios da antiga cidade encontra-se a Vila dos Papiros. À época, era mesmo conhecido como o mais belo dos edifícios atendendo à sua dimensão, à magnificência e qualidade dos frescos que cobriam as suas paredes e ao estuque trabalhado que ornava tetos, volutas e cornijas.

 

«As escavações da Villa dos Papiros revelaram que os livros do sibarita Pisão estavam guardados numa divisão de três por três metros com prateleiras nas paredes e uma estante de madeira de cedro ao centro com três prateiras dos dois lados. Os rolos eram transferidos para o pátio contíguo para poderem lê-los com boa luz, entre luxuosas estátuas. Nesse design, o arquiteto da villa seguia o precedente grego.»

(Irene Vallejo, pág. 348)


O edifício, pelas suas características, emanava beleza e tranquilidade, para o que muito contribuía o terreno verde e cuidado, que o rodeava, e a deslumbrante frente de mar a perder de vista. Numa das suas muitas salas que o compunham, em armários de madeira encontrava-se alojada uma biblioteca de rolos de papiro. Nela se reunia uma das maiores e melhores coleções de documentos da antiguidade: obras de Epicuro e, sobretudo, do filósofo Filodemo de Gádara, mestre de nomes como os de Virgílio, Horácio e Cícero. Filodemo, nascido no ano de 110 a.C., na cidade de Gádara, foi um filósofo e poeta epicurista que estudou sob a alçada de Zenão de Sídon, em Atenas, antes de se mudar para Roma e, posteriormente, para Herculano, onde veio a morrer, em 35 a.C. Conhecido, antes de mais, pela sua poesia preservada na Anthologia Graeca, muitos escritos seus foram descobertos entre os rolos (carbonizados) da Vila dos Papiros, em Herculano.

 

Aspeto de um rolo de papiro encontrado na Vila dos Papiros.
Fonte: https://pt.futuroprossimo.it

 

Apesar de difíceis de decifrar, as obras de Filodemo apresentam-se de importância extrema, pois reúnem muita informação sobre assuntos diversos, tais como: ética, teologia, retórica, música, poesia e a história e o pensamento de várias escolas filosóficas.


«O rolo de papiro implicou um fantástico avanço na história do livro. Os judeus, gregos e romanos adotaram-no com tanto entusiasmo que chegaram a considerá-lo um traço cultural próprio. Em comparação com as tabuinhas, as folhas de papiro são um material fino, leve e flexível e, quando se enrolam, fica armazenada uma grande quantidade de texto em muito pouco espaço. Um rolo de dimensões habituais podia conter uma tragédia grega completa, um diálogo breve de Platão ou um evangelho. Isso representava um prodigioso avanço no que se refere ao esforço para conservar as obras do pensamento e da imaginação.»

(Irene Vallejo, pág. 76)

 

Quando se alude aos papiros de Herculano referem-se os mais de mil e oitocentos papiros aí encontrados, no século XVIII, por volta de 1750, carbonizados pela erupção do Vesúvio no ano de 79, sob o governo de Tito (imperador romano entre os anos de 79 e 81 d.C.).

Após várias tentativas inglórias e métodos de manipulação erróneos, encontrou-se, na atualidade, uma forma de os “desenrolar”, que, finalmente, permitiu alguma da sua leitura e decifração. Constatou-se que os papiros contêm vários textos filosóficos gregos, provenientes de uma única biblioteca pessoal, associada ao filósofo Filodemo de Gádara, identificado como o autor de quarenta e quatro rolos.

Até meados do século XVIII, os únicos papiros conhecidos eram alguns exemplares que haviam sobrevivido da época medieval. Contudo, textos em grego e latim, não tinham sobrevivido, tendo-se fragmentado ou perdido. Muitos ficaram irremediavelmente perdidos com tentativas erróneas, ou menos conseguidas, de os tentar desenrolar.

 

Estátua de bronze de um corredor encontrada na Vila dos Papiros.
Fonte: https://ast.wikipedia.org/wiki/Villa_de_los_Papiros

 

Seja como for, só muito mais tarde, com recurso a métodos e equipamentos científicos avançados (uma combinação de imagens de raios-X com programas de Inteligência artificial), a Biblioteca Nacional Italiana de Nápoles descobriu um processo, não intrusivo e não destrutivo, que permitiu abrir digitalmente um rolo de papiro que não era lido há dois mil anos e decifrar, pelo menos, algum do seu conteúdo. Veio, então, a constatar-se que este riquíssimo conjunto de papiros resgatados dos escombros, preservam textos refinados sobre os mais diversos temas e assuntos: música, poesia, a perceção, a eloquência e a ética, mas, também, sobre o amor, a loucura, a adulação ou a morte.

Como a cidade de Herculano se encontrava mais próxima do Vesúvio, a sua carbonização e consequente extinção de oxigénio aconteceu de forma mais rápida, o que levou a que o seu estado de conservação seja melhor do que o da sua congénere a sul. Assim, em Herculano encontramos papiros, madeira, tecidos e até alimentos que se conservaram por mais de mil e seiscentos anos debaixo das cinzas e da lama vulcânica. Na verdade, a Vila dos Papiros revelou, no seu interior, para além da única biblioteca sobrevivente do mundo clássico, o mais rico museu jamais encontrado numa residência privada: frescos, mosaicos, um grande número de estátuas de bronze representando divindades, heróis, filósofos e poetas, testemunhos únicos de um verdadeiro amor pela arte.

 

JMG

 

 

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:

(BIBLIOGRAFIA, WEBGRAFIA e ILUSTRAÇÕES)

 

BARBIER, Frédéric (2018). De Alexandria às bibliotecas virtuais. São Paulo: EDUSP.

BATTLES, Matthew (2003). A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta do Brasil.

CASSON, Lionel (2001). Libraries in the ancient world. New Haven and London: Yale University Press.

FRWIKI.WIKI [s.d.]. Vila do papiro. [em linha]. [Consult. 09.04.2025]. Disponível: https://pt.frwiki.wiki/wiki/Villa_des_Papyrus

FUTURO PROSSIMO (2025). Os papiros de Herculano carbonizados pelo Vesúvio serão lidos pela IA. [em linha]. [Consult. 08.04.2025]. Disponível: https://pt.futuroprossimo.it/2019/10/i-papiri-di-ercolano-carbonizzati-dal-vesuvio-saranno-letti-dallai/

MURRAY, Stuart A.P. (2009). The library: an illustrated history. New York, Chicago: ALA Editions.

OIKONOMOPOULOU, Katerina; WOOLF, Greg (2013). Ancient libraries. St. Andrews: Cambridge University Press.

THOMPSON, James Westfall (1940). Ancient libraries. Berkeley: University of California Press.

VALLEJO, Irene (2020). O infinito num junco. Lisboa: Bertrand Editora.

WIKIPEDIA (2023). Filodemo de Gádara. [em linha]. [Consult. 03.04.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Filodemo_de_G%C3%A1dara

WIKIPEDIA (2024). Papiros de Herculano. [em linha]. [Consult. 07.04.2025]. Disponível: https://pt.wikipedia.org/wiki/Papiros_de_Herculano

WIKIPEDIA (2024). Villa de los papiros. [em linha]. [Consult. 07.04.2025]. Disponível: https://ast.wikipedia.org/wiki/Villa_de_los_Papiros


2025/04/28

Muitos Anos de Escolas – Volume I – Edifícios para o Ensino Infantil e Primário até 1941 – Capítulo VII - As Escolas da República

 

(Imagem do desenho da fachada principal e plantas da escola primária anexa à Escola Normal de Lisboa. Projeto do Arquiteto Lino de Carvalho)


VII – As Escolas da República

 

A partir da implantação da república, os ideais de “educar para desenvolver” foram tomando forma através da publicação de leis que reformaram as estruturas dos vários níveis de ensino.

A componente pré-profissionalizante do ensino concretizou-se com a fundação da Escola-Oficina n.º 1 (1 de janeiro de 1905), para crianças entre os 7 e os 14 anos. Funcionava de forma flexível, baseando-se no gosto individual de cada aluno e ministrando desde as línguas, ciências e matemáticas, até ao desenho, educação cívica, manualidades, desporto, entre outros. Esta escola foi elogiada e subsidiada pelo governo até 1941.

No âmbito da educação popular, criou-se em 1907 a Liga Nacional de Instrução, com o objetivo de alfabetizar o povo, facilitando a frequência de bibliotecas, museus e laboratórios. Desta foram abriram as Universidades Populares Portuguesas (1911 em Lisboa, 1912 no Porto e 1914 em Setúbal) e as Universidades Livres (1912 em Lisboa e 1925 em Coimbra). Eram gratuitas e embora não conferissem graus académicos, realizaram conferências, palestras, cursos e programas de ocupação social e cultural.

Em 1911 criaram-se as Escolas ao ar livre que visavam o combate da pré tuberculose em crianças dos 5 aos 15 anos e, mais tarde, as Escolas ao Sol, que não se chegaram a concretizar. Em 1913 implantaram-se os Escoteiros em Portugal que em muito contribuíram para a divulgação da vida ao ar livre e da autossuficiência.

Notória foi, igualmente, a preocupação com a formação de professores e, nesse sentido, em 1906 iniciou-se a construção de uma escola junto à Escola Normal de Lisboa. O projeto seria da autoria de João Lino de Carvalho.

No que respeita ao equipamento para o ensino primário, sobressaem o mau estado de conservação e a carência dos mesmos. A partir de 1910 foram muitos os particulares que dinamizaram a construção de novos edifícios.

A legislação estatal procurou acompanhar este dinamismo e em 1912 criou uma Comissão destinada a fixar normas técnicas, higiénicas e pedagógicas para as instalações escolares. De acordo com o texto final de 1917 definiram-se as condições para a escolha de terrenos, as dimensões das salas de aula, a existência de vestíbulos, vestiários e balneários, a necessidade de abastecimento de água potável, sanitários e esgotos, a casa do professor e os tipos de edifícios, salas de desenho, trabalhos manuais e lavores, salão para conferências, cozinha e refeitório, ginásio, luz apropriada, ventilação e aquecimento.

Em 1918 a Repartição de Sanidade Escolar da Secretaria de Estado da Instrução Pública passou a ter 3 seções técnicas: Seção Médica, Secção de Educação Física; e Secção de Construções Escolares. Apesar dos esforços da Primeira República, a concretização destes projetos foi pouco abrangente.

 

 

Fonte: BEJA, Filomena, et al. Muitos Anos de Escolas – Volume I – Edifícios para o Ensino Infantil e Primário até 1941. Lisboa, Ministério da Educação – Direção-Geral da Administração Escolar, 1990.


MJS